Desconstruindo a união estável: quando a ausência de elementos jurídicos impacta a sucessão

Brenda Cordeiro de Paula Valle* 

A união estável, reconhecida pelo artigo 1.723 do Código Civil Brasileiro, é uma entidade familiar que garante direitos semelhantes ao casamento. Entretanto, sua caracterização depende de elementos objetivos (publicidade, continuidade e estabelecimento de família). A ausência desses requisitos gerará conflitos graves na esfera sucessória, especialmente quando herdeiros contestam direitos do companheiro sobrevivente. 

O entendimento jurídico sobre a união estável tem evoluído significativamente nos últimos anos. Atualmente, diversos julgados reconhecem a união estável em situações que antes seriam consideradas atípicas, como nos casos em que não há coabitação. Essa tese, inclusive, já foi consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça, refletindo uma adaptação do direito às novas configurações familiares.

Contudo, é crucial reconhecer que a existência de um vínculo afetivo prolongado, por si só, não garante o reconhecimento da união estável, especialmente em disputas sucessórias. Existem situações objetivas que, quando ausentes, impedem o reconhecimento da união estável, mesmo diante de alegações de um relacionamento duradouro. A seguir, serão destacados alguns desses exemplos, com foco nos principais requisitos dispostos no artigo 1.723 do Código Civil:

  • Ausência de publicidade: Relações mantidas em sigilo, sem testemunhas ou registros externos (como fotos públicas ou documentos compartilhados);
  • A descontinuidade: Uniões intermitentes ou marcadas por separações frequentes não atendem ao requisito temporal implícito na legislação;
  • Falta de interesse em constituir família: Um relacionamento afetivo, mesmo que público, contínuo e duradouro, porém, sem o desejo de construir uma família.

Paralelamente, é interessante observar algumas situações práticas que têm sido objeto de análise pelos tribunais brasileiros, revelando uma evolução no entendimento sobre os requisitos para a caracterização da união estável.

UNIÕES MERAMENTE FINANCEIRAS: São uniões caraterizadas primariamente por interesses econômicos mútuos, sem a presença do elemento afetivo. Nesse quesito, pode ser abordado o termo “ausência de affetio maritalis”. O doutrinador Guilherme Calmon exemplifica de maneira clara sobre tal denominação. Veja:

[…] A respeito dos requisitos subjetivos, devem ser colacionados: a) convivência more uxorio, ou seja, aquela que tenha aparência de casamento, com a intenção de vida em comum; b) affectio maritalis, ou o sentimento de amor e solidariedade entre os companheiros, a intenção de se unirem cercados de sentimentos nobres, desinteressados de qualquer fator de índole econômica ou patrimonial. 

O ordenamento jurídico distingue claramente a união estável da sociedade de fato. Enquanto a primeira é regida pelo Direito de Família, a segunda é tratada no âmbito do Direito das Obrigações.

Tribunais têm consistentemente decidido que relações baseadas apenas em interesses financeiros não configuram união estável. Um grande exemplo que surgiu nos últimos anos foi a figura da “suggar baby”, que pode ser conceituada como “uma pessoa que recebe agrados financeiros de um parceiro em troca de companheirismo, afeição, namoro ou intimidade”. A jurista Giselle Câmara Groeninga (2017), descreve que nessa forma de relacionamento “o que se vende, no caso, está no sonhado virtual de “contratos” claro, sem manifestamente haver outras expectativas.”

NAMORO QUALIFICADO: Pode ser considerado como um relacionamento afetivo sério e duradouro, mas sem a intenção de constituir uma família imediatamente, distinguindo-se da união estável pela ausência do projeto de vida em comum. Essa forma de relacionamento inclui convivência intensa e conhecimento mútuo das famílias, mas manutenção de vidas e patrimônios separados.

O namoro qualificado não está previsto expressamente na legislação, porém, há uma construção doutrinária e jurisprudencial para regulamentar casos em que se enquadram nessa situação. Como exemplo, pode ser destacado o recente entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás que dispõe:

TJGO – EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL C/C ANULAÇÃO DE INVENTÁRIO. REQUISITOS NÃO EVIDENCIADOS. 1. Para o reconhecimento da união estável, exige-se a comprovação da convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família, conforme dispõe o art. 1.723 do CC. 2. No caso vertente, não restou evidenciada a intenção inequívoca do falecido em constituir família, restando demonstrado que o relacionamento mantido entre ele e a recorrente não se ajusta aos moldes legais da entidade familiar que caracteriza união estável, em decorrência da falta da affectio maritalis, assemelhando-se mais a um namoro qualificado pela coabitação que ao casamento ou à união estável propriamente dita. 3. Forçosa, assim, a confirmação da sentença de improcedência. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

A complexidade na caracterização da união estável e suas implicações sucessórias são evidenciadas na jurisprudência acima, onde se julgou improcedente uma ação de reconhecimento de união estável com reflexos em inventário.

O tribunal, ao analisar os requisitos do artigo 1.723 do Código Civil, enfatizou a ausência de affectio maritalis, caracterizando a relação como “namoro qualificado pela coabitação”. Esta distinção crucial demonstra que a mera convivência, mesmo duradoura, não é suficiente para configurar união estável sem a intenção inequívoca de constituir família.

Atualmente, muitos têm adotado o “contrato de namoro”, documento que explicita a natureza do relacionamento de não constituir união estável. Sua validade, apesar de controversa em alguns julgados, serve como indício da natureza da relação.

No entanto, a comprovação da inexistência de união estável não exige, necessariamente, um documento específico. Um importante julgado anulou uma escritura pública de união estável, em razão da ausência de elementos fáticos que comprovassem a relação. Entenda:

[…] 2. Conquanto o artigo 215 do Código Civil estabeleça que a escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena, tem-se que a presunção de veracidade do documento é relativa, podendo ser afastada mediante prova robusta em sentido contrário. 3. A união estável, por se tratar de estado de fato, demanda, para sua conformação e verificação, a reiteração do comportamento do casal, que revele, a um só tempo e de parte a parte, a comunhão integral e irrestrita de vidas e esforços, de modo público e por lapso significativo, com o objetivo de constituir família. 4. No caso vertente, em que pese a declaração de união estável entre as partes envolvidas ter sido reconhecida por escritura pública, o conjunto probatório contido nos autos aponta que este vínculo entre os supostos companheiros nunca existiu, tendo o demandado agido com dolo e de forma maliciosa para fazer com que a falecida tia dos autores assinasse o documento sem o conhecimento e correta compreensão do conteúdo das declarações ali afirmadas. […].

No caso em questão, apesar da existência de uma declaração de união estável em escritura pública, o conjunto probatório demonstrou que o vínculo entre os supostos companheiros nunca existiu de fato. A decisão enfatiza que a união estável, como estado de fato, requer a demonstração de uma comunhão integral e pública de vidas, com o objetivo de constituir família, por um período significativo.

Este entendimento ressalta a primazia da realidade fática sobre formalidades documentais na caracterização da união estável, alertando para a possibilidade de uso indevido de instrumentos jurídicos para simular relações inexistentes, especialmente em contextos sucessórios.

Considerações finais 

Em suma, a análise da união estável sob a ótica da sua desconstrução revela a complexidade inerente à aplicação do direito de família, especialmente em contextos sucessórios. A ausência dos elementos jurídicos essenciais, como a affectio maritalis e o objetivo de constituir família, demonstra que nem toda relação afetiva duradoura pode ser automaticamente convertida em união estável.

A jurisprudência recente, ao relativizar a fé pública de documentos e priorizar a realidade fática, reforça a necessidade de uma análise minuciosa de cada caso, a fim de evitar injustiças e garantir a segurança jurídica. Assim, a desconstrução da união estável não se configura como um mero exercício teórico, mas como uma ferramenta essencial para a correta aplicação do direito e a proteção dos direitos sucessórios legítimos.

*Brenda Cordeiro de Paula Valle é advogada. Especialista em Direito das Famílias e Sucessões. Professora. Sócia do Barra & Brasileiro Advogados. Vice-Presidente Jovem da Comissão de Direito das Sucessões da OAB/GO.

 

REFERÊNCIAS 

ALDERÓN, Ricardo Lucas.  Princípio da afetividade no direito de família.  In:  Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, ano VI, n.  23, abr/mai 2004, Porto Alegre, Magister.

GROENINGA, Giselle Câmara. Sugar daddy e sugar baby: transparência nas relações afetivas (parte 2) (2017).  Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2017-jan-22/sugar-daddy-sugar-baby-transparencia-relacoes-afetivas-parte. Acesso em 25 de março de 2025.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Golpe do baú, suggar baby e a autonomia privada aos olhos do Direito. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jun-23/processo-familiar-golpe-bau-suggar-baby-autonomia-privada-aos-olhos-direito/. Acesso em 25 de março de 2025.

SIMÃO, José Fernando. Sugar daddy e sugar baby: transparência nas relações afetivas (parte 1) (2017).  Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2017-jan-08/sugar-daddy-sugar-baby-transparencia-relacoes-parte. Acesso em: 26 de março de 2025.

TJGO, Apelação Cível nº 5257180-89.2022.8.09.0006, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. Leobino Valente Chaves, 05 de fevereiro de 2024.

TJGO, Apelação Cível nº 5392936-66.2021.8.09.0051, 4ª Câmara Cível, Rel. Des. Elizabeth Maria da Silva, 03 de outubro de 2024.