Conflitos de valores na ressurreição digital como estratégia de branding

Cibele Alexandre Uchoa*

Elevando as estratégias de branding ao patamar das tecnologias mais recentes em uso, na última semana a Volkswagen quebrou a internet com o comercial do novo modelo da Kombi, que deve chegar ao Brasil em breve. Entoando a canção “Como nossos pais”, composta por Belchior em 1976, as cantoras Elis Regina e Maria Rita, mãe e filha, protagonizam a campanha publicitária, que só foi possível graças à utilização de Inteligência Artificial – IA, já que Elis faleceu há mais de quatro décadas.

Esse revival faz surgirem questões sobre direito de imagem, direitos autorais, questões memoriais e ética na utilização de IAs, principalmente nesses casos de produção de deepfakes com fins comerciais, tanto porque a técnica de síntese de imagem e sons humanos foi aplicada a uma personalidade já morta quanto porque alinhamentos políticos passados da VW divergem dos posicionamentos de Elis Regina e Belchior.

As IAs generativas mostram, cada vez mais, que conceitos que funcionavam até bem pouco tempo podem precisar de algum tipo de revisão, como é o caso do direito de imagem. A Constituição brasileira fala da inviolabilidade da honra e da imagem das pessoas, enquanto nosso Código Civil prevê que a utilização ou a exposição dos direitos de imagem de uma pessoa podem ser proibidas se lhe atingirem a honra, a boa fama e a respeitabilidade, ou se tiverem destinação para fins comerciais.

No caso da campanha publicitária da VW, apesar de Elis Regina ser uma figura pública e parte da memória afetiva no imaginário brasileiro, seus filhos, aqueles que poderiam ter mais interesse em reclamar a utilização de sua imagem, estão de acordo com o uso: Maria Rita participou do comercial, enquanto Pedro Mariano e João Marcello Bôscoli se disseram felizes e emocionados, sendo que esse último ainda considera a possibilidade de um show com versão 3D da mãe.

Como até então ninguém tinha previsto que depois de morto estaria protagonizando uma propaganda comercial, pouco importa se Elis Regina teria estrelado uma campanha publicitária para vender Kombis elétricas de uma empresa que se aliou ao regime autoritário ao qual a artista era contrária, ainda mais cantando uma música composta para criticar a ditadura.

Ao contrário dos direitos autorais, não existe lapso temporal definido para o uso da imagem de alguém ou diretrizes referentes à autorização para tal. Quanto aos direitos autorais da música, bom, basta dizer que o comercial não seria sequer veiculado sem a autorização de uso, concedida pelos detentores dos direitos autorais de Belchior, cuja obra, seguindo o que diz a legislação brasileira, só entra em domínio público em 2087.

O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) até instaurou um processo ético para analisar a campanha da VW de acordo com o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária. No entanto, as disposições do código parecem não se adequar especificamente ao uso da imagem de Elis Regina.

Falar em ética na utilização de IAs enquanto não houver regulamentação é produtivo, principalmente para balizar as propostas legislativas; mas esperar essa ética das empresas é utópico. As empresas sempre utilizaram estratégias de branding que conectassem sua marca aos consumidores de acordo com os valores da época, e de preferência com alinhamentos políticos e sociais que gerassem mais lucros e benefícios. Isso quer dizer que as empresas ouvem a opinião do público para alinhar suas campanhas publicitárias, mas apenas descontinuam estratégias de branding se o impacto dessa estratégia tiver sido ruim para a marca.

Segundo o Google Trends, foram realizadas mais de 100 mil buscas por “Elis Regina” somente no dia 4 de julho, isso sem considerar as pesquisas relacionadas, enquanto as buscas pelo automotor elétrico da VW subiram 800% no intervalo de um dia. Quase uma semana depois, os termos de pesquisa atingiram novo pico e “Kombi” teve mais da metade de buscas que “Volkswagen”, único termo relacionado à campanha que até então superava a busca por “Elis Regina”.

Apesar de terem pipocado matérias jornalísticas falando do passado da Volkswagen com os nazistas e seu apoio à ditadura civil-militar brasileira, as buscas relacionando a empresa a regimes autoritários são representadas por curvas gráficas praticamente insignificantes se comparadas com a dos outros assuntos em torno da campanha da VW, incluindo o termo “Inteligência Artificial”. Isso reforça que o branding da VW continua conectando os potenciais consumidores à marca de acordo com o espírito do tempo.

O alvoroço em torno dessa campanha publicitária, que usou Inteligência Artificial generativa de forma impactante e se valeu da polêmica gerada, tem demonstrado, pelo menos nesse caso em específico, muito mais o interesse e a curiosidade do público quanto à tecnologia utilizada que preocupação real com questões relacionadas à regulamentação de IAs, além do acerto da VW com a estratégia, já que os números das buscas tendem a indicar que a maioria das pessoas sentiu aquele quentinho no coração que a Volkswagen objetivava com o comercial.

*Cibele Alexandre Uchoa é escritora, pesquisadora, mestre e doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza e sócia-fundadora do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).