Comentários sobre criminalidade, justiça social, punibilidade e etc., etc., etc…

Fernanda Santos*

A violência nas grandes cidades brasileiras, e nas cidades mais inóspitas dos rincões do Brasil, é sem dúvida uma das questões que mais tem preocupado a sociedade brasileira e algumas de suas mais importantes lideranças políticas, sociais e econômicas nos últimos anos. Isso se explica pelos seus efeitos deletérios sobre a qualidade de vida da população, o acesso a bens, produtos, serviços públicos de qualidade, e a contenção ou a falta desta, para conter o boom de violência em toda a Federação Brasileira, assim como sobre o desenvolvimento socioeconômico do país. Convergentes com essa crescente preocupação, uma ampla gama de instituições governamentais e não-governamentais vêm se debruçando em estudos criteriosos sobre o tema, no sentido de entender melhor a sua natureza, as suas causas, suas consequências e as melhores formas de alocação de recursos sociais e nos aparatos de segurança pública dos estados da Federação. Nesta esteira o doutrinador e processualista penalista Aury Lopes Jr[2]., ressalta desta forma que:

A democracia, enquanto sistema político-cultural que valoriza o indivíduo frente ao Estado, manifesta-se em todas as esferas da relação Estado-indivíduo. Inegavelmente, leva a uma democratização do processo penal, refletindo essa valorização do indivíduo no fortalecimento do sujeito passivo do processo penal. Pode-se afirmar, com toda ênfase, que o princípio que primeiro impera no processo penal é o da proteção dos inocentes (débil), ou seja, o processo penal como direito protetor dos inocentes (e todos a ele submetidos o são, pois só perdem esse status após a sentença condenatória transitar em julgado), pois esse é o dever que emerge da presunção constitucional de inocência prevista no art. 5º, LVII, da Constituição.

Diversos esforços vêm sendo realizados por parte dessas instituições civis organizadas, para ampliar a capacidade de interpretação do fenômenos relacionados à violência, falta de políticas públicas eficientes, de compreensão da causa da criminalidade no país. De fato, ao longo dos anos, diversas pesquisas foram conduzidas levantando dados sobre a vitimização, atendimento hospitalar, óbitos, registros policiais e penitenciários, dentre outros. Em cada levantamento, estas pesquisas forneceram dados que permitiram a investigação de um espectro relativamente amplo sobre a questão da violência e da criminalidade em toda a Federação Brasileira. Em boa medida, isso se explica não apenas pela escassez de dados, ou dificuldade de acesso a estas bases de dados e falta de ampla divulgação dos mesmos, mas também pelo fato de que essas bases de dados se encontram dispersas, levando os pesquisadores a terem maiores dificuldades de trocar informações e experiências na utilização destas bases de dados para a elaboração de outros estudos neste segmento. O doutrinador e processualista penalista Aury Lopes Jr[3]., reforça que:

Argumento recorrente em matéria penal é o de que os direitos individuais devem ceder (e, portanto, ser sacrificados) frente à “supremacia” do interesse público. É uma manipulação discursiva que faz um maniqueísmo grosseiro (senão interesseiro) para legitimar e pretender justificar o abuso de poder. Inicialmente, há que se compreender que tal reducionismo (público – privado) está completamente superado pela complexidade das relações sociais, que não comportam mais essa dualidade cartesiana. Ademais, em matéria penal, todos os interesses em jogo – principalmente os do réu – superam muito a esfera do “privado”, situando-se na dimensão de direitos e garantias fundamentais (portanto, “público”, se preferirem). Na verdade, são verdadeiros direitos de todos e de cada um de nós, em relação ao (ab) uso de poder estatal.

E o doutrinador penalista Guilherme de Souza Nucci[4], entende que:

Os direitos fundamentais, pois, constituem-se de direitos individuais, coletivos, sociais e políticos, exaltados na Constituição, e são os indispensáveis ao pleno desenvolvimento do homem e do cidadão, especialmente frente ao Estado, que tem por obrigação não somente respeitá-los, mas também assegurá-los e protegê-los. As garantias fundamentais são os instrumentos constitucionais colocados à disposição dos indivíduos e das instituições para fazer valer os direitos fundamentais.

A questão da justiça criminal e da segurança pública, no Brasil, tem ocupado cada vez mais espaço na mídia, ou de forma incipiente e insuficiente, ou caricata e propagando os efeitos nefastos do que se chama O Direito Penal do Inimigo. Paralelamente, os seminários que congregam cientistas sociais, juristas, estudiosos ligados aos setores de segurança pública, começaram a reunir informações provindas de investigações realizadas sobre o assunto. É bem verdade que ainda são insuficientes, ou hercúleos os esforços visando agrupar estudiosos e pesquisadores em programas de ensino, pesquisa e extensão que tenham por objetivo reproduzir academicamente estudos arrojados neste campo do conhecimento humano. Isto não tem sido assim em todos os países do ocidente. E em especial, os países de tradição anglo-americana têm substantivas tradições de estudo, pesquisa, expansão e divulgação plena de conhecimento sobre a ordem pública e as formas de sua legitimação, manutenção e reprodução, ainda mais ao se tratar de estudos em foco sobre a criminalidade, justiça social, punibilidade e etc. O doutrinador penalista Guilherme de Souza Nucci[5], abordou a este respeito:

O conceito de Constituição deve levar em conta, portanto, a Constituição escrita, justamente a forma adotada pelo Brasil, jamais se olvidando que esse texto precisa ser elaborado a bem da nação, vale dizer, a fim de garantir ao povo todas as condições para o seu desenvolvimento, tranquilidade, bem-estar, liberdade e, sobretudo, felicidade.

A principal estratégia de controle social é a prevenção dos conflitos pelo controle disciplinar dos indivíduos, que deverão ser capazes de internalizar valores apropriados à convivência social em público, embora com respeito a seus modos de vida particulares. E de acordo com Luiz Rodrigues Wambier e Thereza Arruda Alvim Wambier[6]:

Todavia, de nada adiantaria o reconhecimento, no plano constitucional, de um número expressivo de direitos fundamentais, se a seu lado não se garantisse, também um conjunto de instrumentos eficazes para a sua própria e efetiva realização.

Esta visão democrática, igualitária e individualista da sociedade de hoje, ainda mais amplificada pela pandemia do COVID – 19, entretanto, convive em nossa sociedade com uma outra, que permaneceu implícita – mas claramente detectável à observação – onde a sociedade, à maneira de uma pirâmide, é constituída de segmentos desiguais e complementares entre si. Aqui as diferenças que produzem inevitáveis conflitos de interesses, são reduzidas a sua significação inicial dada por uma relação fixa com contextos mais amplos do todo social. As diferenças não exprimem igualdade formal, mas desigualdade formal, própria da lógica da complementaridade, onde cada um tem o seu lugar previamente definido na estrutura social ainda mais ao se tratar de toda a Federação Brasileira, que em suas dimensões continentais, tem em seu seio: regionalismos, usos e costumes e vicissitudes de toda ordem e de toda sorte. A estratégia de controle social, no caso da contenção da criminalidade para fins de punibilidade, é repressiva, visando manter o status quo ante a qualquer preço, sob pena de desmoronar-se toda a estrutura social a sua volta.

Diferentemente de uma sociedade aristocrática, entretanto, onde os eixos que organizam (ou desorganizam) a desigualdade política, econômica, jurídica e social se encontram claramente demarcados em toda a Federação Brasileira, e por sermos explicitamente uma República, onde tais desigualdades não podem ser juridicamente marcadas, tais eixos, embora claramente presentes na estrutura social/jurídica/econômica a que todos estamos submetidos, não poderiam e não deveriam produzir desigualdade de tratamento político-jurídico aos segmentos da sociedade e aos indivíduos que os compõem em toda a Federação Brasileira. E de acordo com João Ricardo W. Dornelles[7]:

Tal discurso punitivo, baseado em políticas de “tolerância zero” é altamente favorável aos governos que estão inseridos dentro da lógica neoliberal pois estes têm sua atuação aliviada no que diz respeito àquilo em que são mais frágeis, ou seja, a resolução definitiva dos problemas estruturais. Ficando enraizados nas medidas que lhes dão popularidade como novas prisões, aumento das penas, diminuição da maioridade penal, entre outras. A espetaculosidade das operações punitivas importa mais do que sua eficácia. Tal ciclo vicioso impede a reflexão, causando mais opressão ao naturalizar o processo, o que intensifica seus efeitos destrutivos.

À falta dessa definição estruturada em torno de eixos explícitos de legitimação da desigualdade, caberá a todos os cidadãos em toda a Federação Brasileira, mas, principalmente, às instituições encarregadas de administrar conflitos no espaço público, em cada caso, aplicar de modo pormenorizado as regras disponíveis – sempre gerais, nunca locais ou caseiras, de acordo com o status de cada um, sob pena de estar se cometendo uma injustiça irreparável ao não se conformar com a desigualdade social implicitamente reconhecida em nossos dias.

Desigualdade esta inconcebível juridicamente em uma República, mas que cuja existência, nesse contexto de ambiguidade em que nossa sociedade está, gozará de confortável invisibilidade. Para dar alguns exemplos: a legislação processual penal admitirá tratamento diferenciado a pessoas que são acusadas de cometer infrações, não em função das infrações cometidas, mas em função da “qualidade” destas pessoas, consagrando, inclusive, a presença de instrução superior como um desses elementos de distinção. A presença de métodos oficialmente sigilosos de produção da verdade, como é o caso do Inquérito Policial, próprios de sociedades de cidadãos desiguais, que querem circunscrever os efeitos da explicitação dos conflitos aos limites de uma estrutura que se representará como uma estrutura fixa e imutável, e confirmam assim esta naturalização da desigualdade própria de nossa consciência cultural: pois as pessoas neste caso são pessoas são consideradas naturalmente desiguais, em toda a Federação Brasileira.

*Fernanda Santos é bacharela em direito, especialista latu sensu em Direito do Consumidor pela Universidade Federal de Goiás – UFG, especialista latu sensu em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Rede Atame, especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Faculdade Legale, especializanda em Docência Universitária pela Faculdade Serra Geral, entrevistadora do DM Jurídico, foi entrevistadora do Arena Criminal WEB, pela Rádio MID, capacitada em práticas colaborativas pelo Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas – IBPC em 2018, capacitada em administração de conflitos e negociação pelo Centro Universitário Faveni em 2021, controller jurídico  do Grupo Pitterson Maris Advogados Associados, parecerista em matéria cível, filiada na Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD – Núcleo Goiás, e da Associação Vida e Justiça – Associação Nacional em Apoio e Defesa dos Direitos das vítimas da COVID-19 – Núcleo Goiás, Vice presidente da Rede de Ação e Reação Internacional – RARI Núcleo Goiás (2021/2023), foi articulista do jornal Perspectiva Lusófona em Angola (2010/2012), articulista do jornal Diário da Manhã (2009/2019), com publicações veiculadas no site Opinião Jurídica (2008/2011) no site Rota Jurídica em Goiânia-GO (2014/2017), e no Jornal O Hoje (2022/2023), em Goiânia-GO, pela Revista Consulex (2014/2016), e com artigos publicados pela Revista Conceito Jurídico, e Prática Forense pela Editora Zakarewicz (2019). Foi membro efetivo da Comissão da Advocacia Jovem – CAJ, da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Goiás – OAB/GO – Gestão 2013/2015.

REFERÊNCIAS:

DORNELLES, João Ricardo W. Conflitos e Segurança: entre pombos e falcões. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003.

LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 13. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016.

WAMBIER, Luiz Rodrigues. ALVIM WAMBIER, Teresa Arruda. Breves comentários à 2ª fase da reforma do Código de processo civil: Lei 10.352, de 26.12.2001, Lei 10.358, de 27.12.2001. São Paulo: SP,  Revista  dos  Tribunais,  2002.

[2] LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 36.

[3] LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 35.

[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 13. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 67.

[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 13. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 53.

[6] WAMBIER, Luiz Rodrigues. ALVIM WAMBIER, Teresa Arruda. Breves comentários à 2ª fase da reforma do Código de processo civil: Lei 10.352, de 26.12.2001, Lei 10.358, de 27.12.2001. São Paulo:SP,  Revista  dos  Tribunais,  2002. p. 21.

[7] DORNELLES, João Ricardo W. Conflitos e Segurança: entre pombos e falcões. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 10.