Vitor Luiz Costa*
Como é tradição em nosso país, no final de 2023, foi publicado a Lei Complementar nº 204, de 28 de dezembro de 2023, alterando a Lei Complementar nº 87/96 (Lei Kandir) para dispor que não há incidência de ICMS na saída de mercadoria de estabelecimento para outro de mesma titularidade.
Tal medida vai de encontro com o entendimento do STF, decisão proferida junto a ADC 49 julgamento realizado em abril de 2019.
A medida provisória em comento dispõe que o contribuinte deve transferir o crédito (limitado à alíquota interestadual) para o Estado de destino, mantendo o saldo residual no Estado de Origem.
Todavia, apesar de o projeto de lei anterior à Lei Complementar nº 204 (PLP 116/23) assegurar a possibilidade de o contribuinte optar por tributar as operações entre estabelecimentos do mesmo titular, o presidente da República vetou o dispositivo específico (§5º do art. 12º) que previa tal facultatividade, mantendo tão somente a não-incidência do ICMS nessas operações e a manutenção dos créditos.
O parágrafo 5º do artigo 12 da LC 87/1996, vetado, em suma, definia que poderia haver uma incidência fictícia na transferência de mercadorias entre estabelecimentos, para que, com isso, houvesse um débito na operação, com um correspondente crédito ao estabelecimento de destino.
Na análise do Prof. de Direito Tributário, Salvador Candido Brandão Junior, sobre a Lei em questão, seria curioso a manutenção de dispositivo que previa uma hipótese de incidência facultativa de ICMS nas operações interestaduais do mesmo estabelecimento.
Ainda em sua análise, pontuou que: “nem haveria base de cálculo para tanto, na medida em que o § 4º do artigo 13 da LC 87/1996, que trazia critérios para a base de cálculo nos casos de transferências de mercadorias entre estabelecimentos, foi julgado inconstitucional pela ADC 49”[1]
O veto no § 5º do artigo 12 ora em comento se deu não exatamente da maneira que imaginávamos inicialmente, tal veto como também bem pontuado pelo Prof. Candido Brandão, veio mais no sentido de facilidade pronta e direta a administração fiscalizadora, já que seria muito mais difícil e complexo para os órgãos realizarem uma fiscalização efetiva quanto a aplicação (facultativa) da incidência, do que a apuração efetiva do perceptual a recolher.
Também não podemos deixar de comentar que, se não há uma regra clara quanto a maneira de apuração facultativa ou ficta, e se não se houve ocorrido o veto junto ao § 5º do art. 12º, a administração fiscalizadora temeria por uma elisão ou até mesmo uma evasão fiscal.
A Lei Complementar 204/2023 acrescentou o § 4º ao artigo 12 da LC 87/1996, em conformidade com o entendimento do STF no julgamento da ADC 49 e estabelece que a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do contribuinte não é considerada fato gerador do ICMS, determinando, ainda, que a unidade federativa de destino deve reconhecer a transferência de crédito a ser realizada pelo contribuinte.
Em outras palavras, o dispositivo em questão permite a transferência do crédito, porém, delimitando o valor do crédito a ser transferido pelo contribuinte.
Ora qual então seria o limite do crédito que pode ser transferido pelo contribuinte?
A resposta está no próprio § 4 inciso I do art, 12, que assim prevê:
- 4º Não se considera ocorrido o fato gerador do imposto na saída de mercadoria de estabelecimento para outro de mesma titularidade, mantendo-se o crédito relativo às operações e prestações anteriores em favor do contribuinte, inclusive nas hipóteses de transferências interestaduais em que os créditos serão assegurados:
I – pela unidade federada de destino, por meio de transferência de crédito, limitados aos percentuais estabelecidos nos termos do inciso IV do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, aplicados sobre o valor atribuído à operação de transferência realizada;
Adentrando mais no quantum em específico, basta analisarmos as alíquotas aplicáveis nos respectivos Estados onde se destinam a transferência das mercadorias, que podem variar de 4% a 12% dependendo a situação.
Já o inciso II obriga o estado de origem a reconhecer o excesso de crédito no estabelecimento de origem, caso os créditos das operações anteriores superem o limite imposto no inciso I.
Como bem apontado pelo Prof. Candido Brandão, estamos diante de uma problemática textual criada pelo legislador em relação ao disposto junto ao § supra e inciso seguintes.
A questão se afunila e complica na parte final do inciso I, pois, se o Legislador, tivesse finalizado o inciso dizendo que, “o limite da transferência do crédito, guiado pelas alíquotas interestaduais”, estaria claro a intensão dele, contudo, o legislador foi além e terminou a frase dizendo que esse limite será aplicado sobre “o valor atribuído à operação de transferência realizada”.
Ainda se analisarmos a questão como um todo, a de ser concordar que, se o próprio § 4º diz expressamente que a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte não se considera fato gerador do ICMS, qual o sentido de se ter um valor atribuído à operação? Nos parecem um tanto quanto confusa, ou sem a menor coerência.
Como bem salienta o Prof. Candido Brandão, “não há operação, não há valor. Bastaria transferir os créditos da entrada vinculados com a mercadoria transferida”.
Sejamos diretos, se não há na operação no valor a ser recolhido, consequentemente inexiste o fato gerador para o recolhimento do imposto, então o final do dispositivo acrescido pelo Legislador não servira de nada a não ser para criar confusão no ato da interpretação.
Vamos além, se não há a existência do fato gerador nessa transferência de mercadorias, o contribuinte transfere os créditos acumulados de suas entradas se assim entender necessário.
Foi o que o STF, na ADC 49, que assegurou ao contribuinte, ao afirmar que o contribuinte possui o direito de transferir o crédito.
O que nos parece ser a intensão do § 4º introduzido no artigo 12 da LC 87/1996 pela nova LC 204/2023 ao dizer que a transferência de mercadorias não é fato gerador do imposto.
Assim, vamos analisar a questão, se o legislador diz que é um direito do contribuinte transferir o crédito acumulado nessa operação, ele o faz quando e como quiser?
O que aparentemente se apresenta quanto a análise do dispositivo é que o legislador deixa muitos questionamentos e pouca clareza quanto a aplicação da transferência desse crédito cumulado entre a operação, e qual será o valor efetivamente.
Como também deixa margem para que posteriormente, por meio de Lei Ordinária, possa ser estabelecido que “o valor atribuído” a operação será definido por cada ente federado.
Entretanto, cumpre salientar que a questão ora abordada não trata de uma operação considerada fato gerador do ICMS e nem há base de cálculo definida em lei complementar para guiar o valor atribuído à operação.
Então será que o veto aplicado ao § 5º não deveria ter sido estendido ao § 4º, ou quiçá invertido a ordem do veto como bem aduz o Prof. Candido Brandão.
Afastando-se um pouco da análise em questão, podemos ponderar que o Brasil não é um país para aventureiros, cria-se a falsa ilusão de que as atuais investiduras para a reforma tributária, supostas buscas por uma adequação mais “coerente” para os impostos no Brasil está sendo tomada, contudo, continuamos de onde paramos, e não vislumbramos esse divisor de águas com a reforma tributária e demais atos.
Temos, sim, inúmeras lacunas que deveriam ser preenchidas, diversos setores que deveriam ter sido consultados antes mesmo de bater o martelo para esse ou aquele modelo a se utilizar como “novo” sistema de tributação.
Ao meu ver, não foram em parte tomadas decisões acertadas no decorrer dessa “melhoria” no sistema de tributação brasileiro, pois, tudo caminha para ser o Brasil mais uma vez o país com a maior e mais complexa rede de tributação, o que efetivamente deveria ser alterado já que essa é a bandeira levantada pelo Governo.
*Vitor Luiz Costa é advogado. Fundador da VLC Consulting. Membro efetivo da Comissão de Direito Tributário da OAB/SP – Especialista em Direito Tributário – Direito Penal Econômico – Direito Penal – Direito Processual Penal – Docência para o Ensino Superior e Mestrando em Direito e Negócios Internacionais.
[1] https://www.conjur.com.br/2024-jan-03/mais-um-capitulo-da-novela-sobre-transferencias-de-mercadoria-a-lc-204/