Combati o bom combate

*Marcelo Bareato

Há tempos convivemos com o que chamamos de criminalidade exacerbada, uma polícia despreparada, uma classe média que já não se sustenta etc.

Em época de pandemia, a situação apenas fez se agravar, com pessoas perdendo seus empregos, recebendo ajuda de custo que na verdade nem os gastos com alimentação cobriam, vendo aumentar remédios, combustível, alimentação, vestuário e habitação.

Em parte, por despreparo do governo que incrementou riscos e não soube como lidar com a crise, de outra parte porque a crise é mundial e sem um gestor preparado pouco se pode fazer, mas fato é que hoje, no Brasil, temos um dos maiores índices de óbitos do mundo, uma das menores rendas do mundo e uma contaminação por Covid muito acima do que podemos suportar ou que seja aceita pela comunidade internacional.

Todavia, meu caro leitor, não pense que essa introdução tem a intenção de retirar do culpado sua responsabilidade. De fato, não é esse o objetivo. Nosso interesse é despertar em quem nos lê, a busca para as diversas possibilidades que se apresentam.

Comecemos com a ideia de que o crime é uma convenção social (veja também a teoria do labelling approach), da qual nem você e nem eu, participamos da elaboração das leis que o descrevem.

Desse ponto de partida, andemos até a parte em que o sentir como
atitude reprovável para uns, não é o mesmo sentir que para outros. Sem dúvidas, o sentir
a falta de dinheiro e de condições para passar por uma crise é diferente de pessoa para
pessoa e de camada social para camada social. Não é à toa que em períodos como esses,
quem tem dinheiro amealha mais e quem não tem, tende a entrar na miséria.

Se esse é um fato do qual não podemos nos distanciar ou ignorar, cabe aqui nossa pergunta central: o episódio praticado pelo agente será errado aos olhos de quem? Vejamos: a) a esposa faz entrar um celular no sistema prisional para que o marido,
preso consiga relatar as torturas que lhe são impostas e a ausência de alimentação e
remédios de consumo diário que não lhe chegam; b) um pai de família que perdeu o
emprego na pandemia e tem suas crianças passando fome em casa, entra numa padaria e
subtrai itens de primeira necessidade e consumo imediato para seus filhos; c) um idoso
que recebe a notícia de que sua esposa, a qual convive há mais de 40 anos, está com
câncer e precisa fazer um exame não coberto pelo SUS e em caráter de emergência, vai
até a farmácia ao lado do hospital e anuncia um assalto; d) o sujeito que, mesmo com o
decreto emergencial proibindo aglomerações e trabalhos externos, parado há mais de 60
dias em casa, é chamado para trabalhar de garçom em uma festa clandestina e atende ao
chamamento, mesmo em época de Covid-19.

Por certo indicaríamos várias condutas a ilustrar os exemplos acima e, se temos condutas (condutas são acontecimentos que encontram adequação a norma penal), teremos a obrigatoriedade de contenção (por força policial) ou repressão (através do devido processo legal), para que os demais cidadãos tenham como espelho o modelo social a ser seguido.

De outro giro, parece claro indicar que na outra ponta temos os agentes de segurança, treinados para restabelecer a lei e a ordem (e aqui nos referimos apenas à força policial), ainda que de forma truculenta e ensinados que um erro é sempre um erro e que se a lei não for cumprida, quem responde pela falta são eles. São esses os mesmos agentes que receberam por instrução, que pobre é malandro, que drogado é criminoso e
que assaltante é vagabundo. A partir dessa percepção e tendo em vista realidades tão
distintas, uma segunda pergunta poderia ser formulada: a que ponto seria justificável a
prisão das pessoas relacionadas acima para que a lei se faça cumprir?

Por obvio, muito dependerá do lado em que você está, diriam alguns. Outros, dos quais preferimos estender nossa solidariedade, diriam que é uma questão de empatia com o ser humano, de entender que política se faz com controle social e, sobretudo, que uma sociedade só prospera na medida em que todos se disponham a superar as crises juntos para depois empreenderem na busca por aquilo que entendem necessário para sua satisfação individual.

Nesse diapasão, a sociedade assume papel primordial e o Estado, voltado ao bem comum (veja também o conceito multidimensional de segurança humana), passa a entender que a única perspectiva de superação de crises é dar aos indivíduos opções para escolher entre o certo e o que se convencionou a chamar errado, entre não trabalhar e ter comida em casa, entre praticar uma conduta reprovável por necessidade ou por diversão.

Longe da passagem bíblica expressa em 2 TIMÓTEO 4:7-8, dita por Paulo próximo ao final de sua vida e que encerra a ideia de uma vida bem vivida ao serviço de Deus, sem escolha ou sem opção, qualquer forma de criminalidade ou criminalização, outra coisa não é do que outro crime visto pela lente daquele que não conseguiu evoluir ao ponto de sentir a dor do outro e, com isso, assume uma posição de superioridade na qual acredita que o seu agir lhe confere a condição de COMBATER O BOM COMBATE.

*Marcelo Bareato é doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito. É professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO. Advogado criminalista, membro da Comissão Especial de Segurança Pública da OAB Nacional, Conselheiro Nacional da Abracrim, presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, presidente da Comissão Especial de Direito Penitenciário e Sistema Prisional da OAB/GO, entre outros (ver currículo lattes
http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).