Carf: o retorno do “voto de qualidade” e a insegurança jurídica

Dimitry Cerewuta Jucá e Murillo Souza*

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) é órgão colegiado, composto por conselheiros representes da Fazenda Nacional e dos contribuintes, sendo a última instância administrativa para julgar processos tributários no âmbito da União.

Em abril de 2020, por meio da Lei 13.988/2020, havia sido incluído o art. 19-E na Lei 10.522/2002. Na prática, esse dispositivo determinava o fim do voto de qualidade nos julgamentos do Carf.

Até então, os contribuintes estavam sujeitos à regra segundo a qual, em caso de empate na votação entre os conselheiros, caberia ao presidente da Turma ou da Câmara o voto para desempate (voto de qualidade). Ocorre que, tais cargos (de presidente de Turma e Câmara) são ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional. Logo, não raras vezes, os contribuintes se sentiam prejudicados, sob o argumento de que existiria uma tendência de as decisões beneficiarem os interesses do Fisco.

Com a alteração legislativa de 2020, diante de empate no julgamento no Carf, o caso seria automaticamente resolvido a favor do contribuinte. Cabe pontuar que essa norma de 2020 é objeto de três Ações Diretas de Inconstitucionalidade: ADIs 6399, 6403 e 6415. Apesar de a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, que até então já votaram, terem se manifestado pela improcedência das ADIs (ou seja, pela constitucionalidade da regra que extinguiu o voto de qualidade), referidas ações ainda pendem de julgamento pelo STF (em 24 de março de 2022, o ministro Nunes Marques pediu vista dos autos nas três ADIs).

Diante desse cenário, que já era de nefasta insegurança jurídica, foi publicada neste mês a Medida Provisória nº 1.160 (Diário Oficial da União de 12/01/2023), que revogou o art. 19-E da Lei 10.522/2002, ou seja, que fez voltar a valer o voto de qualidade.

Deve-se atentar, ainda, ao fato de que essa revogação ocorreu por meio de medida provisória, instrumento normativo que, se não for convertido em lei no prazo de 120 dias, perde sua eficácia (art. 62 da Constituição Federal). Em síntese, a situação é a seguinte:

  • – Decreto 70.235/1972. 25. (…) § 9º Os cargos de Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que, em caso de empate, terão o voto de qualidade, e os cargos de Vice-Presidente, por representantes dos contribuintes. (Incluído pela Lei nº 11.941, de 2009);
  • – Lei 13.988/2020, incluiu na Lei 10.520/2002 o art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte. (Incluído pela Lei nº 13.988, de 2020)
  • – STF, julgamento pendente, ADIs 6399, 6403 e 6415. Será julgado se é ou não constitucional a Lei que extinguiu o voto de qualidade (por serem ADIs, o efeito da decisão será erga omnes, ou seja, valerá para todos os casos). Por enquanto, há maioria favorável à improcedência das ADIs (ou seja, julgando constitucional a extinção do voto de qualidade)
  • – Medida Provisória 1.160/2023. Determina que “na hipótese de empate na votação no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o resultado do julgamento será proclamado na forma do disposto no § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972” (art. 1º) e, expressamente, revoga o art. 19-E da Lei nº 10.522/2002 (art. 5º).

Como se nota, a insegurança jurídica circunda o tema sobre a forma de resolução do julgamento no caso de empate nas decisões no âmbito do Carf: ora há voto de qualidade (e o julgamento será desempatado pelo voto de um Conselheiro representante da Fazenda Nacional) ora não há o voto de qualidade (e o julgamento resolve-se favoravelmente ao contribuinte).

E não é só o voto de qualidade que retornou por força da medida provisória. Ela também estabeleceu que processos de “baixa complexidade” (até mil salários mínimos – valor de até R$ 1.302.000,00) serão decididos definitivamente por órgão colegiado da DRJ, restringindo o acesso do contribuinte ao Carf.

Isso porque a MP 1.160/2023 incluiu na Lei 13.988/2020 o artigo 27-B,  que dispôs sobre o contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade, assim compreendido o lançamento ou controvérsia que não supere mil salários mínimos.

Por conta dessa alteração, para esse contencioso administrativo de baixa complexidade será aplicado disposto no artigo 23 da Lei 13.988/2020 (destinado às discussões de pequeno valor, até 60 salários-mínimos). Na prática, a regra que passará a valer para os processos “de baixa complexidade” é a de que o julgamento será realizado em última instância por um órgão colegiado da Delegacia da Receita Federal de Julgamento (DRJ).

Vale lembrar que esse colegiado da DRJ é composto por julgadores que são Auditores-Fiscais, nos termos do previsto na Portaria ME nº 340/2020, e isso gera insegurança sob diversas perspectivas. Isto é, os processos serão julgados definitivamente (na esfera administrativa) pela DRJ, e o contribuinte não terá o direito de recorrer ao CARF se o seu caso for de até R$ 1.302.000,00 (um milhão, trezentos e dois mil reais).

Ademais, além de a norma ser questionável sob o prisma do direito ao contraditório, à ampla defesa dentre outros princípios do processo administrativo, se trata de uma medida provisória, que pode perder sua eficácia daqui 120 dias, sendo esse mais um fator que aumenta a insegurança jurídica.

Também consta da MP 1.160/2023 como medida que visa a conformidade tributária no âmbito da Receita Federal, a concessão de anistia (art. 3º).

Será afastada a incidência da multa de mora e da multa de ofício, caso o contribuinte devedor, até 30 de abril de 2023, confesse e pague o valor integral de tributos devidos após o início de procedimento fiscal e antes da constituição do crédito (ou seja, após o início da fiscalização, mas antes da lavratura do auto de infração). A anistia não se aplica no caso de o procedimento fiscal ter se iniciado após a entrada em vigor da Medida Provisória (12 de janeiro de 2023).

*Dimitry Cerewuta Jucá e Murillo Souza são advogados tributaristas. Sócios do Morais, Jucá & Souza Advogados Associados.