Alienação de bens do espólio por escritura pública: a inovação da Resolução CNJ nº 571/2024

Camille Trentin*

Durante décadas, a alienação de bens do espólio dependia, inevitavelmente, do crivo judicial. O Código de Processo Civil, em seu art. 619, consolidou a possibilidade de venda de bens do espólio, desde que houvesse oitiva dos interessados e expressa autorização do juiz. Essa exigência, embora tivesse a finalidade de preservar a legalidade e os interesses dos sucessores, frequentemente representava um entrave à celeridade e à efetividade do inventário, sobretudo em casos de urgência econômica ou depreciação iminente do bem.

O trâmite tradicional implicava na formulação de um requerimento fundamentado pelo inventariante, a apresentação de justificativas, a manifestação dos herdeiros e, por fim, a análise judicial que autorizasse ou não a venda. Esse caminho, além de moroso, por vezes frustrava a própria finalidade do negócio jurídico pretendido. Havia situações em que, ao final da tramitação, o bem já havia perdido valor de mercado, o comprador já não tinha mais interesse ou o motivo da alienação simplesmente deixaria de existir.

Foi nesse cenário que, em agosto de 2024, o CNJ editou a Resolução nº 571, introduzindo um importante marco para a desjudicialização da alienação de bens no contexto do inventário: a possibilidade de venda direta de bens do espólio, por meio de escritura pública, sem necessidade de autorização judicial, desde que observados certos requisitos legais.

A nova disciplina normativa: segurança, celeridade e controle

O novo art. 11-A da Resolução CNJ nº 35/2007 (incluído pela Resolução nº 571/2024) estabelece critérios objetivos para que a alienação extrajudicial seja considerada válida e segura, tanto para os herdeiros quanto para os terceiros adquirentes. A alienação poderá ser formalizada mediante escritura pública, desde que preenchidos os seguintes requisitos:

  1. Discriminação detalhada das despesas do inventário, incluindo ITCMD, honorários advocatícios, emolumentos notariais e registrais, entre outros encargos;
  2. Vinculação do valor da venda ao pagamento dessas despesas, de forma parcial ou total;
  3. Ausência de indisponibilidade de bens em nome de quaisquer dos herdeiros, cônjuge ou companheiro sobrevivente;
  4. Apresentação das guias de todos os impostos incidentes sobre a transmissão, com a devida menção aos respectivos valores;
  5. Inclusão, no texto da escritura, dos valores estimados dos emolumentos e indicação das serventias responsáveis pelos orçamentos;
  6. Prestação de garantia (real ou fidejussória) pelo inventariante, assegurando a destinação do produto da venda ao pagamento das despesas discriminadas no item “1”.

Trata-se de um procedimento que, embora extrajudicial, continua rigidamente controlado, não mais pela figura do juiz, mas pelos parâmetros normativos e pela responsabilidade atribuída ao inventariante, que assume o dever de zelar pelo correto destino dos valores envolvidos.

Extinção da garantia e efeitos jurídicos

Cumpridas as obrigações estipuladas, especialmente quanto ao pagamento das despesas discriminadas, a garantia prestada pelo inventariante é considerada extinta. O bem alienado, embora listado no acervo hereditário para fins de cálculo do ITCMD, emolumentos e definição do quinhão dos herdeiros, não será objeto de partilha, tendo sua venda previamente mencionada na escritura pública.

A resolução também fixa o prazo de até um ano para quitação das despesas, contado da data da alienação. No entanto, as partes podem estipular prazo inferior, ajustando-o à realidade da transação e do inventário.

A medida é um exemplo claro de racionalização do sistema sucessório brasileiro ao permitir que negócios urgentes e necessários possam ser realizados com maior agilidade. Contudo, a via extrajudicial não será possível em todos os casos. Conflitos entre os herdeiros, impugnações, divergências quanto ao valor do bem ou à sua destinação, ou ainda a existência de restrições patrimoniais, como penhoras e indisponibilidades, inviabiliza essa solução mais célere. Nestes casos, o processo continuará tramitando pela via judicial, com todos os rigores e garantias que o procedimento impõe.

Uma janela aberta à modernização

A Resolução CNJ nº 571/2024 inaugura um novo paradigma na tramitação dos inventários ao permitir a alienação extrajudicial de bens do espólio por escritura pública, sem necessidade de autorização judicial. Trata-se de um avanço normativo que busca compatibilizar a celeridade desejada pelas famílias com a segurança jurídica indispensável à sucessão patrimonial, especialmente diante da crescente demanda por soluções mais ágeis no Direito das Sucessões.

Ainda que não aplicável universalmente, a alienação extrajudicial de bens do espólio emerge como um instrumento moderno e eficaz, alinhado com os princípios da autonomia privada, da eficiência e da celeridade processual. Cabe ao profissional do direito avaliar cada caso com rigor, identificando a viabilidade e os riscos envolvidos, e conduzindo a sucessão com inteligência estratégica e responsabilidade técnica.

*Camille Trentin é especializada em processo civil e advogada na Álvaro Santos advocacia, escritório atuante especificamente na área do agronegócio na cidade de Jataí/GO.