A interpretação do STJ sobre bens de capital na recuperação judicial

Letícia Marina da Silva Moura*

A recente decisão da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) durante o julgamento do Conflito de Competências nº 196553 – PE (2023/0128405-7)[1] trouxe à tona importante debate acerca da natureza do dinheiro no contexto da recuperação judicial, bem como a respectiva competência para deliberação de eventual constrição.

Por maioria de votos (seis a um), os Ministros decidiram que cabe ao juízo da execução fiscal determinar se os valores pertencentes a uma empresa em recuperação judicial devem ser bloqueados ou não. Acompanhando o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a maioria entendeu que dinheiro não pode ser considerado um bem de capital da empresa.

Sob essa ótica, sabe-se que a recuperação judicial é um instrumento legal que visa à reorganização econômico-financeira de empresas em dificuldades. Durante esse processo, a suspensão das execuções contra a empresa (stay period) permite que ela negocie com seus credores e busque meios para superar a crise (art. 6º da Lei nº 11.101/2005).

No entanto, o julgamento reavivou um importante conceito correlacionado à seara da insolvência empresarial: o bem de capital e sua essencialidade para a recuperação judicial. A Lei de Recuperação de Empresas e Falências (LREF) estabelece uma ressalva no § 3º do art. 49[2], que exclui os bens de capital essenciais à sua atividade empresarial dessa suspensão. Mas o que exatamente se enquadra nessa categoria?

Inicialmente, a essencialidade é questão de fato, que exige prova da imprescindibilidade do bem para a atividade produtiva do bem[3]. Nesse ponto, é certo que todos os ativos são valiosos para a atividade empresarial, e isso é ainda mais verdadeiro para empresas em situação de crise, não obstante, a Lei nº 11.101/2005 e o entendimento dos Tribunais pátrios reafirmam a necessidade de enquadramento no conceito legal para a proteção dos bens. Para além da visão dos Tribunais, a doutrina moderna também se debruça sobre a conceituação de bem essencial. Sobre a questão, cita-se, a lição de Fábio Ulhoa Coelho[4]:

Os bens de capital sobre os quais recai a garantia da alienação fiduciária não podem ser retirados da posse da sociedade em recuperação judicial enquanto não transcorrido o prazo de suspensão das execuções. Aquela expressão tem sido entendida, no Poder Judiciário, de modo restrito, como referida apenas aos insumos que não se transferem, na circulação de mercadoria, aos adquirentes ou consumidores dos produtos fornecidos ao mercado pela sociedade empresária. A matéria-prima, assim, embora seja insumo, não tem sido considerada bem de capital. Afinal, se se trata de proteger a posse da sociedade empresária em recuperação sobre bens essenciais ao exercício de sua atividade, excluem-se desse universo os insumos incorporados aos produtos fabricados ou comercializados, que a mesma sociedade recoloca na cadeia de circulação de mercadorias (Sem grifo no original).

Retornando o olhar à prática empresarial, por ocasião do julgamento do conflito de competência nº 153.473/PR (2017/0179976-7)[5], a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) debruçou-se sobre tal questão conceitual. Para que um bem se enquadre nessa ressalva, é necessário que ele atenda a alguns requisitos: (I) o bem deve ser corpóreo (ou seja, tangível) e estar na posse direta do devedor. Além disso, (II) o bem não pode ser perecível nem consumível. Essa condição visa garantir que o bem possa ser entregue ao titular da propriedade fiduciária caso persista a inadimplência.

Nas palavras da Ministra Relatora Maria Isabel Gallotti: “por bem de capital, deve-se compreender aqueles imóveis, máquinas e utensílios necessários à produção. Não é, portanto, o objeto de comercialização da pessoa jurídica em recuperação judicial, mas o aparato, seja bem móvel ou imóvel, necessário à manutenção da atividade produtiva, como veículos de transporte, silos de armazenamento, geradores, prensas, colheitadeiras, tratores, para exemplificar alguns que são utilizados na produção dos bens ou serviços”.

Sob essa visão, trazendo o conceito à prática, têm-se, por exemplo, que o estoque, composto por mercadorias destinadas à venda, não pode ser considerado bem de capital. Isso porque, uma vez vendidas, a garantia fiduciária ficaria sem objeto, já que os bens alienados não poderiam ser entregues ao titular da propriedade resolúvel.

Da mesma forma, os títulos de crédito dados em alienação fiduciária também não podem ser considerados bens de capital. Esses títulos não estão na posse direta do devedor e não são utilizados como insumo de produção. São patrimônio alienado para garantia de obrigações assumidas.

Em perfeita harmonia, conforme o entendimento da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) durante o julgamento do Conflito de Competências nº 196553 – PE (2023/0128405-7), o dinheiro também não pode ser classificado como um bem essencial. Nesse ponto, sabe-se que o dinheiro é fungível, ou seja, pode ser substituído por outro valor equivalente. Ele não é um bem específico e não está vinculado diretamente à produção ou à atividade empresarial. Além disso, diferentemente de máquinas, equipamentos ou imóveis, o dinheiro não é utilizado como insumo na produção de bens ou serviços. Ele é meramente um meio de troca e reserva de valor.

Nesse viés, reforça-se o contraste entre as figuras de bem de capital essencial e bens de consumo no campo da recuperação judicial. Por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.991.989 – MA (2021/0323123-8)[6] restou consignado justamente a visão do Tribunal da Cidadania sobre a celeuma: o bem de consumo (em oposição ao bem de capital) “constitui aquilo que é produzido com utilização do bem de capital, seja durável ou não durável, e que será comercializado pela empresa, ou prestado na forma de serviços”.

Desse modo, em suma, enquanto os bens de capital são protegidos durante o stay period, os intitulados bens de consumo podem ser livremente alienados ou retomados pelo proprietário. À vista disso, conclui-se que a interpretação do conceito de bens de capital é crucial para a efetividade da recuperação judicial. O juízo da recuperação deve decidir quanto à essencialidade dos bens para a atividade da empresa, e o credor deve aguardar o prazo previsto na lei para valer-se da garantia.

*Letícia Marina da Silva Moura é advogada e jornalista. Especialista em Direito Empresarial e Falência e Recuperação de Empresas. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Processo Recuperacional e Falimentar da Fundação Arcadas/USP.

[1] STJ – CC: 196553 PE 2023/0128405-7, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 18/04/2024, S2 – SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 25/04/2024

[2] Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. […] § 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.

[3] Enunciado 99 da III Jornada de Direito Comercial – Para fins de aplicação da parte final do art. 49, § 3º, da Lei n. 11.101/2005, é do devedor o ônus da prova da essencialidade do bem.

[4] COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de falências e de recuperação de empresas [livro eletrônico] / Fábio Ulhoa Coelho. – 5. ed. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

[5] STJ – CC: 153473 PR 2017/0179976-7, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Julgamento: 09/05/2018, S2 – SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 26/06/2018.

[6] STJ – REsp: 1991989 MA 2021/0323123-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 03/05/2022, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/05/2022