A inconstitucionalidade de normas estaduais que determinam ou prevêem a criação de procuradorias por entes municipais

*Alexandre Augusto Martins

A edição do periódico denominado Diário de Aparecida, que circulou no dia 24 de setembro 2018, trouxe entrevista do candidato a deputado estadual pelo MDB, Ozair José da Silva, oportunidade em que, inadvertidamente, o citado candidato asseverou que se eleito irá propor a alteração do artigo 65 da Constituição do Estado de Goiás.

A proposta do candidato Ozair José Silva cinge-se em:

Art. 1º O art. 65 da Constituição Estadual passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 65 – Para obtenção de seus objetivos, os municípios poderão:

(…) V – constituir Procuradoria-Geral, instituição de natureza permanente e essencial à Justiça com a incumbência de representação judicial e a consultoria jurídica dos municípios.

Parágrafo único – Os Procuradores dos Municípios, organizados em carreira, no qual dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e consultoria jurídica dos respectivos municípios.”

Art. 2º – Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.

Preocupado com a gritante inconstitucionalidade que assola a proposta do candidato Ozair José Silva, passo a análise e apresentação dos fundamentos que denotam encontrar-se a mesma acoimada de vício indelével.

Inicialmente, há de se rememorar que estamos próximos à data em que a promulgação da Constituição Federal completa 30 anos.

A denominada Constituição Cidadã foi promulgada em 05 de outubro de 1988, alterando a dinâmica das normas e regras constitucionais anteriormente vigentes, num grande avanço que buscou exortar o Estado Democrático de Direito, a Autonomia do Entes Federados, a Separação dos Poderes, além de fomentar, de maneira contundente, a garantia e a preservação dos Direitos Fundamentais e Sociais.

Neste particular a Carta Magna hoje vigente representa um avanço, e por vezes há de se reconhecer que suas disposições e regras parecem encontrar-se ainda a frete do tempo, ou seja, gozam de características que podem ser exaltadas, tais como a inovação e o avanço, ensejando modernidade.

Dentre os princípios basilares insculpidos e tratados na Lex Mater, há de se exaltar aqueles que garantiram aos entes Municipais a autonomia, fazendo com que os mesmos, efetivamente, fossem considerados entes federados.

A autonomia compreende a prerrogativa e a possibilidade de se auto organizar, politica e administrativamente, através de legislação própria, e que envolve também a possibilidade de se autogovernar.

A Constituição Federal em seu artigo 18, caput, define que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.”.

A regra contida no caput do artigo 18 da Lex Mater reafirma a figura da independência dos entes federados, enfim, ratifica a capacidade de autogoverno, de auto-organização, de auto estruturação, de editar regras e normas necessárias ao exercício das atividades políticas de administrativas.

O Legislador Constituinte cuidou ainda de disciplinar competências comuns aos entes federados, dentre as quais, a mais importante parece ser aquela insculpida no artigo 23, I, da CF/88, que impõe à União, aos Estados, ao Distrito Federal, e aos Municípios o dever de zelar pela guarda da Constituição, das leis, e das instituições democráticas, além de promover a conservação do patrimônio público.

Essa regra, per si, garante a manutenção da federação.

Noutro rumo, preocupou-se ainda o Legislador Constituinte em definir competências e atribuições exclusivas de cada um dos entes federados, fato que confere a cada qual um papel singular dentro da federação.

As competências deferidas e estabelecidas para os entes municipais encontram-se delineadas no artigo 30 da Constituição Federal, dispositivo que é assim vertido:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local;

II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV – criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

Dentre as competências dos entes municipais, talvez a mais importante e precípua seja a de legislar sobre assuntos de interesse local, regra esta que efetivamente, juntamente com o primado da autonomia, garante a possibilidade de auto-organização e de auto-gestão, imprescindíveis a existência dos municípios.

Como se pode verificar, ante a leitura do texto da proposta apresentada pelo candidato Ozair José Silva, e realizando o cotejo de seu conteúdo com o texto constitucional, dessume-se que há clara violação da autonomia do ente municipal, o que denotaria inconstitucionalidade material, e do mesmo modo, inobservância da regra de competência insculpida no artigo 30, I, da CF/88, que estabelece competir aos municípios a atribuição de legislar sobre assuntos de interesse local.

Infelizmente o postulante à cadeira no Poder Legislativo Estadual parece desconhecer regras basilares de competência, fazendo veicular proposta que não se encontra alcançada pela mínima possibilidade ou viabilidade jurídica, mais se aproximando de uma aventura também jurídica.

As Constituições Estaduais não podem veicular regras ou dispositivos em desprezo ao princípio de autonomia dos entes federados, bem como à divisão de suas regras de competências, diretrizes que se encontram estabelecidas na Constituição Federal.

Esta afronta enseja o reconhecimento do vício inconstitucionalidade, conforme reconhecido pelo Colendo Supremo Tribunal Federal em julgado assim ementado:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – ART. 75, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO DE GOIÁS – DUPLA VACÂNCIA DOS CARGOS DE PREFEITO E VICE-PREFEITO – COMPETÊNCIA LEGISLATIVA MUNICIPAL – DOMÍNIO NORMATIVO DA LEI ORGÂNICA – AFRONTA AOS ARTS. 1º E 29 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. O poder constituinte dos Estados-membros está limitado pelos princípios da Constituição da República, que lhes assegura autonomia com condicionantes, entre as quais se tem o respeito à organização autônoma dos Municípios, também assegurada constitucionalmente. 2. O art. 30, inc. I, da Constituição da República outorga aos Municípios a atribuição de legislar sobre assuntos de interesse local. A vocação sucessória dos cargos de prefeito e vice-prefeito põem-se no âmbito da autonomia política local, em caso de dupla vacância. 3. Ao disciplinar matéria, cuja competência é exclusiva dos Municípios, o art. 75, § 2º, da Constituição de Goiás fere a autonomia desses entes, mitigando-lhes a capacidade de auto-organização e de autogoverno e limitando a sua autonomia política assegurada pela Constituição brasileira. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente. (STF – ADI: 3549 GO, Relator: CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 17/09/2007, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-134 DIVULG 30-10-2007 PUBLIC 31-10-2007 DJ 31-10-2007 PP-00077 EMENT VOL-02296-01 PP-00058)

No mesmo sentido o Sodalício Goiano já asseverou em diversos julgados que a criação de órgãos de assessoramento jurídico municipais está afeta aos princípios da autonomia dos entes federados, da separação dos poderes, da oportunidade e conveniência, não podendo ser objeto de intervenção ou interferência externa, como se verifica nos seguintes excertos:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONTRATAÇÃO DE PROFISSIONAL LIBERAL. ADVOGADO. AUSÊNCIA DE LICITAÇÃO E CONCURSO. 1 – A criação da procuradoria municipal e preenchimento dos respectivos cargos via concurso público é matéria vinculada ao mérito administrativo, não podendo ser imposta pelo julgador, haja vista o princípio da separação dos poderes constituídos, insculpido no artigo 2º, da Carta Magna vigente. 2. A Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), em diversas oportunidades, abre espaço para a atuação discricionária do administrador, em especial nas hipóteses de inexigibilidade, onde há permissão de contratação direta, para alcançar o objeto desejado pela Administração Pública. 3 – Os serviços advocatícios podem ser classificados como “serviços singulares”, isto é, serviços técnicos especializados. Constituindo o assessoramento jurídico atividade que demanda a apreciação de condições subjetivas do prestador do serviço, em especial quanto à sua capacidade de lidar com a necessidade de suporte técnico-científico da Administração, singulariza-se o serviço, fundamentando sua inexigibilidade.  RECURSO CONHECIDO, MAS DESPROVIDO. (TJGO, APELACAO CIVEL 14516-12.2011.8.09.0164, Rel. DR(A). MAURICIO PORFIRIO ROSA, 2A CAMARA CIVEL, julgado em 19/05/2015, DJe 1793 de 27/05/2015)

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER E DE NÃO FAZER. CÂMARA MUNICIPAL. CRIAÇÃO DE CARGOS DE PROCURADOR JURÍDICO. JUÍZO DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. LICITAÇÃO NA MODALIDADE CONVITE. TERCEIRIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE ASSESSORIA JURÍDICA. INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO. PODER DISCRICIONÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRECEDENTES DO STF. PREQUESTIONAMENTO. 1. A criação e preenchimento, via concurso público, de cargos de procurador jurídico é matéria vinculada ao mérito administrativo, não podendo ser imposta pelo julgador, haja vista o princípio da separação dos poderes constituídos, insculpido no artigo 2º, da Carta Magna vigente. 2. A Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), em diversas oportunidades, abre espaço para a atuação discricionária do administrador, em especial nas hipóteses de inexigibilidade, onde há permissão de contratação direta, para alcançar o objeto desejado pela Administração Pública. 3. Considerando a impossibilidade de julgamento objetivo acerca das propostas apresentadas pelos advogados/licitantes, e verificado o vínculo de confiança que circunda a contratação desses profissionais, além das naturais dificuldades em se sopesar qual deles seria o melhor para o exercício das funções almejadas pelo município, tem-se que os serviços de advocacia revelam-se inconciliáveis com a licitação. Precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF). APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA, PORÉM DESPROVIDA. (TJGO, APELACAO 0375975-36.2013.8.09.0013, Rel. JEOVA SARDINHA DE MORAES, 6ª Câmara Cível, julgado em 08/03/2018, DJe  de 08/03/2018)

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER E DE NÃO FAZER. PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA. CITRA E EXTRA PETITA. CÂMARA MUNICIPAL DE AVELINÓPOLIS. CONTRATAÇÃO DIRETA DE SERVIÇOS DE ASSESSORIA JURÍDICA. INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO (ARTIGO 13, II, III E V C/C 25, CAPUT E § 1º, DA LEI Nº 8.666/93). SINGULARIDADE DO SERVIÇO. INVIABILIDADE DE COMPETIÇÃO. NOTÓRIA ESPECIALIZAÇÃO. DISCRICIONARIEDADE DO ADMINISTRADOR NA ESCOLHA DO MELHOR PROFISSIONAL, DESDE QUE PRESENTE O INTERESSE PÚBLICO. CRIAÇÃO DE CARGO DE PROCURADOR. REALIZAÇÃO DE CONCURSO PÚBLICO. JUÍZO DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE. INGERÊNCIA DO JUDICIÁRIO. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. 1. Incabível a alegação de nulidade da sentença por vício extra e citra petita, quando encontra-se dentro dos limites do pedido e em conformidade com sua natureza, não havendo que se falar em ofensa ao princípio da congruência ou da adstrição. 2. A regra é a realização de procedimento licitatório pelos entes públicos. Excepcionalmente, contudo, a Lei de Licitações, em diversas oportunidades, abre espaço para a atuação discricionária do administrador, em especial nas hipóteses de inexigibilidade elencadas em seu art. 25, onde há permissão de contratação direta, para alcançar o objetivo desejado pela Administração Pública. 3. Apesar de os serviços de advocacia serem de trato diário e ordinário, possíveis de serem prestados, a princípio, por qualquer profissional habilitado, sua natureza intelectual e singular, bem como, a relação de confiança entre o contratante e contratado legitimam a inexigibilidade de licitação para contratação. Precedentes do STF e do STJ. 4. A singularidade dos serviços prestados pelo advogado está associada à sua capacitação profissional, tornando-se inviável a competição e, consequentemente, a escolha do melhor profissional, por meio de licitação, porquanto tal mensuração não se funda em critérios objetivos. 5. A Constituição Federal, ao dispor sobre a manutenção de um quadro de Procuradores, o fez somente em relação à União, Estados e Distrito Federal, resultando daí que a viabilidade ou não da criação das Procuradorias nos Municípios ou em suas Câmaras é ato discricionário afeto à Administração Pública Municipal, notadamente por envolver dispêndios financeiros, não podendo ser impostas pelo Poder Judiciário. Inteligência do art. 132 da CF/88. APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA E DESPROVIDA. (TJGO, APELACAO CIVEL 376736-67.2013.8.09.0013, Rel. DR(A). WILSON SAFATLE FAIAD, 6A CAMARA CIVEL, julgado em 16/05/2017, DJe 2274 de 25/05/2017)

Assim, espera-se que o candidato e postulante à vaga na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás citado em linhas superiores reflua de sua intenção, posto que ausente a possibilidade a viabilidade jurídicas, ao passo em que figura como obrigação precípua de qualquer legislador conhecer quais são suas atribuições, limites e competências.

*Alexandre Augusto Martins é presidente da Comissão do Advogado Publicista da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Goiás