A fragilização das audiências de custódia

*Marcos Antônio Nicéas Rosa

O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás – TJGO, por sua Corte Especial, em 2015, editou a Resolução nº 35, instituindo o chamado “Projeto Audiências de Custódia”, modificando para tanto, parcialmente, a competência de um dos Juízos Criminais de Goiânia, o qual passou a ser destinado exclusivamente para a realização  dos atos processuais, então determinados pelo Supremo Tribunal Federal que, em sede de decisão liminar em Medida Cautelar na ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental-ADPF nº 347/15[1], decidiu que “…juízes e tribunais, observando os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos”, e deveriam realizar “em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão”.

Norma administrativa e gerencial esta que, em seu âmbito, compete exclusivamente a Corte de Justiça, e que recebeu duas outras alterações por meio das Resoluções nº 54/2016[2] e 82/2018[3], as quais, respectivamente, corroborando a competência exclusiva de Juízo único para a realização das Audiência de Custódia, ampliou tal competência para a apreciação de procedimentos penais constitucionais, cautelares e contracautelares decorrentes de Auto de Prisão Flagrante, desde que realizados anteriormente a sessão, e que somente após, realizaria a redistribuição, bem como, regrou a realização das Audiências de Custódia em plantão forense.

Até que, objetivando, segundo, cumprir as determinações emanadas pelo mesmo STF e pelo CNJ, em sede de procedimentos administrativos[4], critérios estatísticos que não justificariam a permanência do modelo de juízo exclusivo,   entre outros “CONSIDERANDO”, debruçou-se novamente o TJGO sobre o tema, editando a Resolução nº 86, de 25 de abril de 2018, alterando em sentido diametralmente oposto a competência para julgamento exclusivo, consignando em seu art. 4º que: “As comunicações de flagrantes serão distribuídos entre os juízes com competência criminal da Comarca de Goiânia e os processos terão curso na respectiva unidade, inclusive para a realização da Audiência de Custódia”.

Mas, para além do mérito administrativo[5] e do inarredável argumento de racionalização do funcionamento do Poder Judiciário e de sua força de trabalho, enfim, de todos os “CONSIDERANDO”, a modificação introduzida pelo art. 4º da Resolução nº 86, como única solução possível, se atende aos nortes administrativos, desatente os de dignidade da pessoa humana em sua perspectiva processual penal de direito constitucional aplicado.

Conquanto, a pulverização da competência entre todos os Juízos Criminais – 13varas de reclusão e duas de detenção -, para o julgamento dosaspectos custodiais, estritos e predeterminados: legalidade e necessidade da prisão, controle de custódia e proteção à integridade física do conduzido, prevenção à tortura, abuso de autoridade, tratamento cruel, prisão arbitrária, reconhecimento dos direitos subjetivos do custodiado, fiança, Liberdade Provisória, Relaxamento do Flagrante, fixação de medidas cautelares diversas da prisão entre outros[6], distancia-se dos Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, os quais motivaram a provocação do STF e a sua manifestação no sentido publicizado.

O respeito aos direitos e as garantias individuais dos acusados da prática de tipos penais que, segundo a Autoridade Policial, foram presos em flagrante delito, só se revelam justos se a análise da legalidade não se encerrar no simples formalismo do direito a apresentação em 24 horas, com assistência técnica e etc., mas se também for garantido aos acusados um julgamento justo, em Juízo especializado, imparcial e incompetente para o mérito da possível acusação que poderá surgir com o oferecimento de denúncia pelo Ministério Público, despido assim de todas as preocupações exteriores aos aspectos custodiais.

Uma vez que, com a Resolução nº 86, ao adquirirem os Juízos criminais da Comarca de Goiânia competência para o  recebimento das comunicações dos Autos de Prisão em Flagrante, realizando tanto das Audiências de Custódia como  firmando a jurisdição para o julgamento dos Inquéritos Policiais e das Ações Penais, implicará em valoração não imparcial dos requisitos do art. 302, art. 304 e art. 319 do Código de Processo Penal, dentre outros, pois cientes de que também serão os condutores dos desdobramentos processuais – exceto incompetência relativa –,  estarão desde o primeiro ato processual, vinculados intimamente com o manejo das contra cautelares defensivas e com o mérito acusatório principal, com o risco da manutenção imerecida do encarceramento, sob uma plêiade de argumentos estritamente formais e extrajurídicos, ao reverso da indispensável análise incontaminada de um dirigente processual ordinário que, jamais poderia deixar de ser desempenhada por Juízo exclusivo, tal como indicado pela revogada Resolução nº 35/2015.

A relevância das Audiência de Custódia por Juízo único, residia principalmente na análise exclusiva dos aspectos custodiais apenas, seguro de que não julgaria o mérito de determinada ação penal – salvo substituição automática –, oferecendo a todos os acusados levados ao Poder Judiciário o igualitário tratamento na proclamação do direito meramente processual, espécie de juízo de valor antecedente, salutar característica essa que se esvai com o art. 4º da Resolução nº 86, pois, humanos que são, os órgãos do Poder Judiciário ao analisarem os aspectos formais das Audiências de Custódia ficarão, sem dúvida, afetados com o mérito da imputação comunicada pela Autoridade Policial, a qual para eles, ainda retornará para julgamento (meritório) em definitivo, ressoando inegavelmente no convencimento custodial  para a aplicação ou não do art. 310 do CPP, ainda que em mínima parte.

Destarte, apenas formalmente, subsistirá a contracautelar de Revogação da Prisão Preventiva que, por óbvio –  salvo caso excepcionalíssimo a ensejar a sua repetição –, de quase nenhum proveito terá se manejada em face de  uma mesma decisão que já indeferiu a Liberdade Provisória de fundamento processual penal muito similar e/ou idêntico[7], com ou sem o arbitramento de fiança, ou contra o indeferimento da aplicação imediata de Medidas Cautelares diversas da prisão preventiva, vez que, já enfrentada a questão por um mesmo Juízo e Juiz.

Na prática, tem-se o escamotear de uma contra cautelar que ainda que formalmente oferecida, pouco ou nenhum sucesso no mérito terá, não olvidando ainda que, por serem agora Juízos diferentes, com pautas diferentes, em horários de trabalho e métodos diferentes, estará desnatura quase que completamente o direito a um processo justo e igualitário, a permanecer a redação do art. 4º da Resolução nº 86, mantendo aos acusados, apenas o direito a um direito, o que não significa um processo justo.

As críticas de que a realização das Audiências de Custódia são mecanismos de soltura em massa não procedem, pois colocam em liberdade (ainda que condicionada), apenas as pessoas que acusadas de crimes, de todo modo seriam, revelando assim, a importância da valoração dos aspectos custodiais em Juízo próprio, especializado, materialmente e rotineiramente, também segundo os reclames de parte da sociedade para a criação de Juízos especializados em crimes de Lavagem de Dinheiro, Corrupção e etc.

Logo, porque não recriar um Juízo talhado para a importantíssima valoração dos direitos e das garantias individuais em contexto de acusação criminal (art. 1º, inciso III da CRFB/88), na esteira do artigo 9, inciso 3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos “…autoridade habilitada…”, do artigo 7º, inciso 5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos: “…juiz ou outra autoridade autorizada…”, da decisão já proferida pelo STF na ADPF 347/15, do critério de especialidade e tantos outros fundamentos que se somam aos aqui, em poucas linhas trazidos, sem legalismo ou garantismo, mas sem os “CONSIDERANDO” estritamente gerenciais. 

*Marcos Antônio Nicéas Rosa é advogado, especialista em Direito Civil e Processo Civil, secretário da Comissão de Direito Constitucional e Legislação (CDCL) da OAB/GO

[1] STF – Pleno. Rel. Min. MARCO AURÉLIO, j. 09.09.15, divulgado em 18.02.16, Publicação: 19.02.2016, DJe nº 031, ADPF/DF.

[2] Resolução nº 34 de 13 de abril de 2016.

[3] Resolução nº 82 de 24 de janeiro de 2018.

[4] Reclamação Constitucional nº 25.891/GO e Reclamação CNJ nº 0002389-89.2017.2.00.000

[5] Competência, Finalidade, Forma, Motivo e Objeto.

[6] Art. 310 do CPP: Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I – relaxar a prisão ilegal; ou II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Parágrafo único.  Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação.

[7] Art. 312 do Código de Processo Penal.