A falácia da ressocialização pela prisão: análise do complexo prisional goiano

*Alan Kardec Cabral Jr

O crime, segundo Durkheim, é um fenômeno normal de toda estrutura social, e o criminoso, para ele, é todo aquele que deixa de obedecer às leis do Estado (SHECAIRA, 2014, p. 197).

Mas por quais motivos se comete crime? Por mais sedutor que possa parecer, definir as causas do crime é uma pretensão gigantesca, pelo simples fato de a violência ser intrínseca ao homem.

Note-se que, se levarmos em consideração o referencial bíblico, na tradição judaico-cristã, sobre a história do homem, constataremos tal assertiva. Cumpre à Bíblia narrar o primeiro crime violento, a morte de Abel por Caim, seu irmão, no famigerado fratricídio. Daí por diante, na versão bíblica, há infindáveis crimes, até se chegar ao crime mais lembrado da história, a morte cruel do Filho de Deus (SÁ, 2016, p. 30).

Oportuno lembrar que, mesmo diante do flagelo lhe imposto, suas últimas palavras foram: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lucas 23:34).

Sabia Ele que, somente por meio do perdão, poder-se-ia se romper a odiosa cadeia de violência e vingança; todavia, mesmo que Deus os tenha perdoado, os homens não o fizeram, e o resultado “é que as violências e crimes continuaram e continuam, aguçando-se suas razões e agravando-se suas perspectivas” (SÁ, 2016, p. 30).

Dessarte, sabe-se que o humano não sobrevive isolado; e, em todo corpo social, há poder e coerção. Qualquer sociedade organizada impõe penas sobre os que violam suas leis (ZAFFARONI, 2015, p. 18).

O poder punitivo, nesse contexto, torna-se meio de verticalização hierárquica do Estado, uma forma de demonstração de poder, pelo qual se deve punir o transgressor para proteger os demais integrantes do corpo social e, por meio da prisão, recuperar/ensinar o membro social que não se adequou às normas impostas.

Na literatura penal, justifica-se a pena de prisão com dupla finalidade: prevenção geral e prevenção especial.

A prevenção geral realiza-se, segundo Zaffaroni, “mediante a retribuição exemplar que se dirige a todos os integrantes da comunidade jurídica” (2018, p.102).

A prevenção especial, que é o objeto do presente artigo, é realizada, consoante Juarez Cirino dos Santos, “pelos técnicos da execução da pena criminal – os chamados ortopedistas da moral, na concepção de FOUCAULT – com o objetivo de promover a harmônica integração social do condenado”, seguindo a fórmula antiga: punitur, ne peccetur (punido, para que não peque) (2017, p. 426).

Logo, para a execução da pena, o castigo obtém a finalidade utópica da ressocialização.

A premissa mais tradicional da ressocialização, baseada nos preceitos correcionalistas, considera, pois, o preso inválido, incapaz de autodeterminar-se e, por conseguinte, carente de ajuda. A pena exerce uma função pedagógica, ensina a linguagem dos demais cidadãos ordeiros, internaliza os preceitos de ordem moral vigentes no contexto social (PETER FILHO, 2011, p. 61).

Encontrar algum autor que refute totalmente a finalidade ressocializadora da pena na fase executiva não é tarefa fácil, visto que a sanção penal, nessa quadra, visa a fornecer um tratamento humano ao apenado.

O complexo prisional localizado em Aparecida de Goiânia/GO, por sua vez, configura um cenário catastrófico e desumano, palco de diversos motins e rebeliões, que demonstram a total falência do sistema carcerário goiano.

Nessa situação, afinal, por que punir?

Zaffaroni diz que, contemporaneamente, a fé no poder punitivo tornou-se uma religião, haja vista que hoje se atribui a ele uma onipotência que não é deste mundo, razão pela qual foi convertido em um verdadeiro ídolo, e seu culto, em uma idolatria (2015, p. 153).

No discurso oficial, pune-se para ressocializar.

A crença na bondade do poder punitivo, em especial na prisão e na sua aptidão de fazer o bem, procria a lenda da ressocialização do indivíduo, mediante a correção do condenado, por meio do trabalho conjunto de “psicólogos, sociólogos, assistentes sociais e outros funcionários da chamada ortopedia moral do estabelecimento penitenciário, que dominou os últimos dois séculos de execução do projeto técnico-corretivo da prisão” (CIRINO DOS SANTOS, p. 4), dois séculos, porém, de fracasso.

Não obstante, se o termo “ressocializador” tem por finalidade fazer o ser humano tornar-se novamente “sociável”, deveria o sistema penitenciário ser apto a isso. Contudo, no complexo prisional da região metropolitana de Goiânia, na linha de Goffman, o que há, verdadeiramente, são “profanações do eu” (1988, p. 12), conforme pode-se verificar a seguir.

2 COMPLEXO PENITENCIÁRIO DE APARECIDA DE GOIÂNIA

 

Para este introito, tomar-se-á por parâmetro inspeção feita no mês de março de 2017, conduzida pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (Ministério da Justiça. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Relatório de inspeção em estabelecimentos penais de Goiás, 2017).

Na época da Inspeção CNPCP, 2017, o sistema penitenciário abrigava 20.145. (GOIASPEN – Gestão Penitenciária – População Carcerária do Estado de Goiás. SEAP/SSP. Dados atualizados em 19 de maio de 2017).

3.1 Central Regional de Triagem

 

A Triagem, como é popularmente conhecida, é um Centro de Observação Criminológica/Remanejamento que tem a capacidade para abrigar 212 presos.

Na data da Inspeção/CNPCP, o local abrigava 470 presos (p. 79).

As principais queixas dos presos foram:

(i) precariedade das instalações; (ii) falta de assistência jurídica; (iii) falta assistência à saúde; (iv) falta de assistência educacional e atividades esportivas; (v) maus-tratos e torturas.

Durante a inspeção, chamou atenção o fato de os presos haverem ficado 50 (cinquenta) dias sem água, ficando sem banho e recebendo apenas galão para beber. Como estavam sem água, jogavam as fezes pela janela.

Ficou constado, também, superlotação; presos provisórios junto a presos condenados, primários junto a reincidentes; número insuficiente de camas individuais (o estabelecimento não oferece colchões); condições precárias de higiene e limpeza das celas (o estabelecimento não oferece itens de higiene pessoal); refeições inadequadas às necessidades dos presos.

No dia 28.06.2018, o Ministério Público requereu o relaxamento dos presos que estavam na unidade há mais de 120 dias e a proibição de recebimento de mais detentos, uma vez que no local havia 679 reclusos, o triplo da capacidade (1).

3.2 Casa de Prisão Provisória

 

Popularmente conhecida como CPP, a Casa de Prisão Provisória é uma cadeia pública que recebe presos provisórios, com capacidade para 600 presos.

As refeições chegam em números insuficientes, e presenciaram-se mau acondicionamento dos alimentos, caixas de transportes deterioradas e marmitas empilhadas desorganizadamente.

O mau acondicionamento da comida tornou-a imprópria para consumo.

Na data da Inspeção/CNPCP, o local abrigava 2.432 presos, sendo 120 mulheres (p. 117).

No local, não havia (i) biblioteca; (ii) sala de aula; (iii) sala de professores; (iv) atividades esportivas; (v) atividades culturais e de lazer; (vi) local destinado a visitas íntimas; (vii) local específico para visita de crianças;

As principais queixas dos presos foram:

(i) falta de assistência jurídica; (ii) falta assistência à saúde; (iii) falta de assistência educacional e atividades esportivas.

Durante a inspeção, também chamou atenção o fato de os presos pedirem muito por estudo. No local, há uma escola, porém desativada.

A parte elétrica estava bem prejudicada e requeria reformas, vários presos queixaram-se de choques.

Ficou constado, por fim, superlotação; presos provisórios junto a presos condenados, primários junto a reincidentes; número insuficiente de camas individuais (o estabelecimento não oferece colchões); condições precárias de higiene e limpeza das celas (o estabelecimento não oferece itens de higiene pessoal); refeições inadequadas às necessidades dos presos; inexistência de cursos de alfabetização.

3.3 Penitenciária Coronel Odenir Guimarães

 

Popularmente conhecida como POG, a Penitenciária Coronel Odenir Guimarães é responsável por acolher presos do regime fechado, com capacidade para 802 presos.

Na data da Inspeção/CNPCP, o local abrigava 1.140 presos (p. 60).

Havia, no posto de saúde da unidade, enfermeiros, assistentes sociais, médicos, psicólogos. A defensoria pública comparece com regularidade.

Nesta visita, havia mais de 300 presos matriculados nas atividades educacionais.

No local, porém, não havia (i) biblioteca; (ii) sala de aula; (iii) sala de professores; (iv) atividades culturais e de lazer; (v) local destinado a visitas íntimas; (vi) local específico para visita de crianças.

As principais queixas dos presos foram:

(i) falta de assistência jurídica; (ii) falta assistência à saúde; (iii) visita.

Durante a inspeção, também chamou atenção o fato de a arquitetura ser de 1962.

No dia 23 de fevereiro de 2017, foi registrada briga entre supostas facções, que resultou na morte de 5 presos e 35 feridos, fato amplamente divulgado pela mídia.

Ademais, alguns presos demonstraram estado grave de saúde, como certo detento que fez cirurgia e estava com complicação, porém sem acompanhamento médico.

Ficou constado, também, superlotação; presos provisórios junto a presos condenados, primários junto a reincidentes; número insuficiente de camas individuais (o estabelecimento não oferece colchões); condições precárias de higiene e limpeza das celas (o estabelecimento não oferece itens de higiene pessoal); não disponibilização dos medicamentos básicos do SUS; condições inadequadas de realização de trabalho; inexistência de trabalho voltado para a reinserção social do condenado.

Durante a análise da inspeção dos estabelecimentos prisionais para a confecção deste introito, chamou atenção o fato de nenhum dos locais citados acima possuir local adequado para tratamento de álcool e drogas.

Essa questão é preocupante, pois, conforme a resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, mais de 70% dos reclusos são usuários/dependentes de álcool e/ou outras drogas, de modo que crimes contra o patrimônio, violência doméstica, tráfico e até crimes contra a vida estão atrelados, em alguma medida, ao uso desmedido dessas substâncias. Ora, se a pena se prestasse ao fim que se prega, dever-se-iam, no mínimo, criar programas de atenção integral aos usuários/dependentes nas dependências dos estabelecimentos penais (Resolução n. ° 1, de 28 de fevereiro de 2012).

3 HÁ POSSIBILIDADE DE RESSOCIALIZAÇÃO?

Para punir um homem, retributivamente é preciso injuriá-lo. Para reformá-lo, é preciso melhorá-lo. E os homens não são melhoráveis através de injúrias (SYKES, 1972, p. 9).

 

Uma das questões mais intrigantes que se coloca, a partir da análise dos estabelecimentos penais destacados, é como punir o preso e, ao mesmo tempo, reformá-lo diante às condições degradantes mostradas?

Verdadeiramente, o discurso da ressocialização não se sustenta. A hipocrisia do Estado em ocultar os verdadeiros fins da prisão, de fato, obsta a admissão do fracasso da pena de prisão.

Vê-se, comprovadamente, que o sistema penal é “perverso, degradante, desumano, torpe e cruel” (YAROCHEWSKY, 2005, p. 1).

Já tarde, é hora de dizer, de vez, chega ao discurso ressocializador, que “é uma lenda sem sentido, nem fundamento, contada há gerações” (ROSA; KHALED JUNIOR, 2014).

Justificar a pena com discurso sedimentado na ressocialização soa como piada de mau gosto, considerando que, contemporaneamente, o sistema penitenciário nacional é um dos maiores crimes contra a humanidade e –  o pior – cometido por pessoas engravatadas.

Consoante Juarez Cirino dos Santos, o fracasso das funções declaradas da prisão refere-se ao projeto de correção do condenado. Desde o nascimento do cárcere até os dias atuais, as pesquisas empíricas demonstram que:

  1. a) primeiro, a relação entre pena e reincidência: quanto maior a pena, maior a reincidência criminal; b) segundo, a influência negativa da subcultura da prisão sobre o condenado: a reconstrução psíquica da autoimagem como criminoso, as deformações emocionais do preso, os processos de desculturação (desaprendizado das normas sociais) e de aculturação do condenado (aprendizado das normas de sobrevivência na prisão: as normas da violência e da malandragem, por exemplo) (p.5).

Ainda, segundo o professor, o êxito das funções reais da prisão evidenciam que ela é meio de garantir as desigualdades sociais, mediante uma gestão diferencial da criminalidade, cuja função é: “a) imunização legal das elites de poder econômico e político; b) repressão penal das massas populares de marginalizados do mercado de trabalho e de oprimidos sociais em geral” (CIRINO DOS SANTOS, p. 5).

É sabido que uma sociedade sem prisão é, hoje, inimaginável, porquanto a crença no poder punitivo é quase sumidade. Há séculosvive-se sob a ameaça e o padecimento punitivo na convicção de que alguém precisa sofrer ou morrer para que a sociedade viva (ALAGIA, 2018, p. 13).

No entanto, deve-se abandonar a ilusão correcionalista da prisão; e, consequentemente, a busca da reintegração do sentenciado à sociedade deve ser levada a sério, tornando menos precárias as condições de vida no cárcere.

Diante do quadro exposto, é possível perceber que o discurso da prevenção especial da pena não se firma; logo, o mito da ressocialização “somente perdura em quem está de má-fé ou mofado por ideias não arejadas “(ROSA; KHALED JUNIOR, 2014).

*Alan Kardec Cabral Jr. é especialista em Processo Penal, Direito Penal e Criminologia, advogado no escritório Rogério Leal Advogados.

 

5 REFERÊNCIAS

ALAGIA, Alejandro. Fazer Sofrer: imagens do homem e da sociedade no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2018.

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: Parte Geral. 7. ed. rev. e atual. ampl. Florianópolis, SC: Empório do Direito, 2017.

________. Os discursos sobre o crime e criminalidade. Artigo escrito em homenagem aos professores doutores Nilo Batista e Vera Malaguti Batista. Disponível em: https://cirino.com.br/artigos/.

GOIASPEN – Gestão Penitenciária – População Carcerária do Estado de Goiás. SEAP/SSP. Dados atualizados em 19 de maio de 2017.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução de Márcia Bandeira, 4. ° ed. Rio de Janeiro: LCT, 1988, p. 12.

LUCAS, Ch. apud FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Relatório de inspeção em estabelecimentos penais de Goiás, 2017.

PETER FILHO, Jovacy. Reintegração Social: um diálogo entre a sociedade e o cárcere. São Paulo, Universidade de São Paulo, USP, 2011.

ROSA, Alexandre Morais da; KHALED JR, Salah H. Direito penal mofado: a lenda conveniente da ressocialização. Justificando. São Paulo, 2014.

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

SYKES, Gresham M. The Society of Captives. New Jersey: Princeton University Press. 1972, p. 9 (tradução nossa).

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE GOIÁS. Corregedoria-Geral da Justiça. Relatório de inspeção dos presídios de Goiás, 2015.

YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Ressocialização, reintegração, reeducação ou recuperação do condenado: uma grande farsa. Disponível na internet: www.ibccrim.org.br, 20/06/2005.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIARANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018.

(1) https://g1.globo.com/go/goias/noticia/mp-go-pede-relaxamento-de-prisoes-e-proibicao-de-novos-detentos-na-central-regional-de-triagem-em-aparecida-de-goiania.ghtml. Acesso em 01.07.2018.