A criminalidade em época de pandemia

*Marcelo Bareato

Temos ouvido muito através dos canais responsáveis pela divulgação de estatísticas, que a criminalidade só fez aumentar nessa época de pandemia e que beiramos índices de “guerra civil” em determinados locais.

Por certo, viver em estado de guerra civil sempre foi uma peculiaridade de alguns estados brasileiros, mas existem fatores que explicam de forma pontual todas essas colocações, estamos falando do desrespeito às normas Constitucionais e suas diretrizes enquanto fonte para um Estado Democrático de Direito.

É certo, por exemplo, que a história da sociedade industrial fez com que várias famílias que se dedicavam ao cultivo da terra migrassem para os centros urbanos e isso trouxe as cidades a questão da infraestrutura, ou seja, estavam preparadas para uma quantidade X de pessoas e, de uma hora para outra, viram-se com um número infinitamente maior, sem condições para recebe-los e prover trabalho, alimentação e moradia a contento.

No mesmo sentido, se o Estado não dá condições dignas para que a pessoa se comporte como cidadão, é fato que teremos um acréscimo sensível no índice de criminalidade. A tão conhecida criminalidade só se faz presente onde o Estado não exerce a sua função e não ocupa o espaço que lhe é destinado.

Fatores outros, são também fortes indicadores desse fenômeno, como é o caso dos refugiados, os quais, de acordo com o Estatuto do Imigrante – Lei n. 13.455/2017, tem por lei direito à moradia e trabalho, o que parece utopia, já que para os nacionais, não obrigamos o Estado a prover tais condições.

De toda sorte, percebemos à existência de pontos convergentes, que facilitam a degradação social ao longo dos anos, mas que, especialmente na atualidade, quando comparamos nossa situação à de outros países onde o fenômeno da industrialização, da migração e da pandemia também assolaram a população, percebemos que várias coisas poderiam ter seguido em outra direção.

Antes, porém, vamos identificar a trajetória mundial em relação a pandemia. Em todos os Estados desenvolvidos, o famoso “lockdown”, cujo significado é confinamento, ocorreu por prazo determinado e para que os respectivos Governos pudessem se preparar, de forma emergencial, claro, estruturando a economia e a saúde para o enfrentamento do problema.
Assim, ficar em casa nesse momento, significava e ainda significa, deixar o Governo estruturar o país para o enfrentamento da crise, resguardando a população de danos ainda maiores.

Destarte, o fator permanecer em casa deveria ser traduzido em: 1) período excepcional, 2) Governo arcando com as despesas para minimizar danos no país, tais como mortes, falta de mão de obra especializada, propagação de doenças e indenizações pela ineficiência do Estado, 3) controle maior sobre pontos sensíveis a corrupção, etc.

Nesse sentido, a ineficiência de qualquer Estado em buscar saídas viáveis, significa, ao mesmo tempo, a instalação do caos e consequências desastrosas para a população, o que fará com que o período de calamidade se prorrogue como se estivéssemos em meio a uma avalanche.

Do ponto de vista social, quantificar o número de mortos ou recuperados, num país de dimensões como o Brasil, para além de ajudar ao Ministério da Saúde em traçar estratégias para debelar o problema, mais não é, do que provocar comoção social e tentar remediar aquilo que não foi estudado, dimensionado e eficazmente trabalhado para manter a Democracia que tanto se espera.

Pontualmente com relação a criminalidade em época de pandemia, as estatísticas mostram que, no Brasil, com relação a violência doméstica tivemos um acréscimo de 40% (istoedinheiro.com.br); feminicídios aumentaram em 22% (agenciabrasil.ebc.com.br); no tocantes a crimes cibernéticos, aumento de 50% (g1.globo.com); no critério corrupção (vale lembrar o “decreto de calamidade” que em razão do coronavírus dispensa muitas administrações de fazerem procedimentos licitatórios), um aumento de 40% (epoca.globo.com); suicídios e depressão ainda sem estatísticas oficiais, são relacionados aumentos especialmente com relação a solidão provocada pelo isolamento e as incertezas futuras e além da ansiedade diante da doença (noticias.uol.com.br).
Fica então a pergunta: qual a razão de aumentarmos esses índices enquanto outros países mantiveram seus indicadores, ou mesmo abaixaram a criminalidade?
A resposta parece simples!

Andamos mal mais uma vez por razões obvias: 1) nosso Governo não se preparou durante o período de “lockdown” para o enfrentamento da pandemia e ainda não sabe como fazê-lo, o que se percebe com as várias trocas em ministérios e cargos importantes, ou mesmo com as entrevistas equivocadas, pra não dizer algo mais contundente; 2) os pequenos e médios empresários, em total desespero, demitiram em massa, sem direito a um plano emergencial que garantisse seus negócios e preservasse a mão de obra adquirida ao longo dos anos; 3) as pessoas ficaram, da noite para o dia, sem recursos para a sua subsistência; 4) as contas, salvo alguns poucos casos, continuaram a chegar, a exemplo do que ocorreu com água, luz, gás, telefone, condomínio, aluguel, internet e impostos (a maioria contas que deveriam ter sido bancadas pelo Governo nesse período); 5) permitimos que alimentos, os quais não puderam ser exportados e tínhamos em abundância nos pastos e nas lavouras, sofressem reajustes; 6) permitimos que a moeda fosse desvalorizada para atender aos anseios de uma política econômica por demais duvidosa (basta compararmos com outras economias parecidas e ouvirmos a opinião dos especialistas da área); 7) não implantamos uma política de saúde pública capaz de atender aos necessitados, nem mesmo aos que padeciam e ainda padecem com depressão, ansiedade, ainda que de forma remota, por meio de profissionais de saúde, tais como psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais, etc.

O reflexo é muito simples: 1) confinar sem dar condições para a própria subsistência gera desentendimento dentro de casa, seja por não estar acostumado com a convivência por tanto tempo, seja pela ausência dessa convivência, o que aumentou a violência doméstica; 2) as pessoas que ficaram sem receber o famigerado auxilio e não tinham a quem recorrer, passaram a integrar o grupo dos pequenos delitos na intenção de prover, de alguma forma, o sustento de sua família (o que ainda pode gerar problemas gravíssimos, como por exemplo, saques em estabelecimentos comerciais especialmente voltados a alimentação); 3) o consumo de drogas aumentou em razão da depressão por ausência de comunicação com o mundo exterior, ansiedade e carência de recursos; 4) o mesmo se deu com o consumo de bebidas alcóolicas (fatores incentivadores do quadro de violência doméstica); 5) falimos e fechamos vários estabelecimentos comerciais, o que pôs muita gente em casa, sem renda, desempregada e com contas para pagar sem receber acertos trabalhistas; 6) por conta do item anterior, muitos impostos e dívidas não serão cobradas, pois se não há produção, não há pagamento do que se deve; 7) aumentamos, e muito, a possibilidade de contaminação pelo coronavírus, pois não tínhamos programa de saúde forte o suficiente para esclarecer a população e doar o básico aos necessitados para evitar a propagação do vírus; 8) não cuidamos dos sistemas prisionais, fontes de altíssima contaminação e disseminação através de seus agentes penitenciários.

Nesse momento talvez você estivesse se perguntando quais as opções para sanar essa problemática, ou ao menos, encaminhá-la a um patamar aceitável?

Existem questões que perpassam pelo empenho em descobrir o que as leis lhe permitem e como cobrar de quem de direito. Outras, estão situadas no pacto pelo crescimento e estruturação de todos.

Enquanto não pensarmos em conjunto, pouco poderemos fazer, como por exemplo, reclamar do preço do arroz, mas continuar comprando, reclamar que a corrupção está endêmica, mas não fiscalizar e buscar as propostas dos representantes que ascendem ao poder e esquecem do que prometeram.

A criminalidade em época de pandemia, como toda e qualquer forma de criminalidade, deriva de uma convenção social e como tal, saber se seu vizinho tem o que comer em casa, evita um furto famélico ou um local saqueado; ajudar o idoso com as compras do mês ou aquisição de remédios, evita mais uma contaminação e morte por coronavirus; ceder uma máscara ou álcool em gel para um necessitado, minimiza as dificuldades que a rua lhe impõe; fiscalizar onde é empregado o dinheiro gasto com o condomínio, é evitar o desvio daquilo que você custa a ganhar; não permitir reajustes salariais em épocas de calamidade ou fora do que se considere aceitável frente ao que recebe a população e fiscalizar prefeitos, vereadores, juízes, servidores, promotores, é uma das formas de conter a corrupção; observar o que acontece com as pessoas que lhe circundam, com as crianças, com os idosos, com as mulheres, sempre sem interferir nas suas individualidades, mas atento às suas necessidades, pode salvar uma vida ou impedir a tão combatida violência doméstica.

Essas são algumas propostas para que possamos enxergar uma “luz no fim do túnel”, mas para corroborar o que dissemos até aqui, fechamos nosso artigo de hoje indicando um tema a ser estudado, talvez para o início da sua familiarização com o direito e tudo que expusemos: A SEGURANÇA HUMANA, a qual, de acordo com a agenda 2030 da ONU, “é centrada no bem estar do povo, assegurando sua sobrevivência para que assim possam criar sistemas políticos (sociais, ambientais, econômicos e culturais) que lhe permitam viver com dignidade tendo seus direitos respeitados. O conceito está pautado nos 7 pilares (economia, alimentação, saúde, meio ambiente, cidadania, consciência comunitária e política, consubstanciando os 17 objetivos de Desenvolvimento Sustentável)”.

*Marcelo Bareato é doutorando em Direito Público pele Estácio de Sá/RJ, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal da PUC/GO, advogado criminalista, membro da Comissão Especial de Segurança Pública da OAB Nacional, conselheiro nacional da Abracrim, presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, presidente da Comissão Especial de Direito Penitenciário e Sistema Prisional da OAB/GO entre outros.