Dois advogados e partes são condenados por litigância de má-fé em 167 processos

Wanessa Rodrigues

martelo processo
As fraudes foram constatadas após o magistrado aumento significativo no número de ajuizamento de demandas daquela natureza

O que parecia ser a solução para pessoas com o nome negativado em cadastros de inadimplentes (como SPC e Serasa) virou um problema ainda maior. Em Senador Canedo, município localizado na Região Metropolitana de Goiânia, 167 consumidores foram condenados a pagar multa, de até R$ 14 mil, por litigância de má-fé após entrarem com pedidos de indenização contra empresas, principalmente de telefonia e bancos. As condenações, dada pelo juiz Marcelo Lopes de Jesus, do Juizado Cível e Criminal do município entre os meses de maio e abril, ocorreram devido à constatação de fraude em documentos, possivelmente feita pelos advogados Pedro Henrique Santos de Oliveira e Thiago Vicente de Araújo Lemes. Os profissionais, procuradores de todas as partes, também foram condenados ao pagamento solidário das multas, que somam mais de R$ 2 milhões.

As fraudes supostamente cometidas foram constatadas após o magistrado responsável pelo Juizado da comarca perceber, nos últimos meses, aumento significativo no número de ajuizamento de demandas daquela natureza – passou de 15 a 20 por semana para uma média de 150 no mesmo período. Além disso, que constavam nos processos comprovantes de endereços com fortes indícios de fraude. Mediante consulta realizada junto às concessionárias de serviços públicos (Celg e Sanesc) foi comprovada a inconsistência das informações lançadas na grande maioria dos comprovantes de endereço juntados às iniciais como forma de justificar a propositura das ações na comarca.

O Juizado também expediu ofícios às concessionárias, com cópia de toda a documentação juntada pelas partes autoras com cópias das peças iniciais, a fim de que fossem confrontados os dados com as informações dos sistemas das empresas. Em especial, o número da unidade consumidora e a titularidade das faturas apresentadas em juízo como comprovantes de endereço. Segundo consta nas sentenças, “ao receber as respostas das solicitações, ficou patente a fraude/alteração de documento particular, a fim de ludibriar este juízo, e, por conseguinte, modificar a competência da ação, atendendo ao interesse da parte demandante e de seus procuradores, que direcionaram o ajuizamento da demanda como bem entenderam.”

O magistrado diz nas ações que, diante da evidente manipulação indevida da máquina judiciária, confirmada por meio da documentação fornecida pelas concessionárias de serviços públicos, é “inadmissível que condutas dolosas da parte autora e de seus procuradores sejam coroadas por este Juízo, posto que alteraram a verdade dos fatos, ajuizando um volume excessivo de ações, certamente de competência territorial distinta, provocando prejuízos manifestos aos jurisdicionados em potencial”.

Partes
Mesmo tendo sido condenadas, ao que tudo indica, nem todas as partes tinham ciência da falsificação dos documentos. Atraída pela promessa de limpar o nome e receber indenização, a ajudante de serviços gerais Adriana Morato de França, que estava com o nome negativado por conta de uma dívida de R$ 88 junto à OI, por exemplo, afirma ao Rota Jurídica que só teve conhecimento do ocorrido ao receber intimação de um oficial de Justiça na semana passada. Segundo afirma, ela entrou no escritório dos advogados atraída pela possibilidade de fazer uma consulta junto aos dados do SPC Brasil. Ao constatar que o nome estava sujo, recebeu a informação de que o problema poderia ser resolvido com ação judicial.

Adriana conta que o próprio advogado fez a consulta e disse que poderia entrar com a ação. No mesmo dia, foram tiradas cópias de documentos pessoais e de seu comprovante de endereço. Após três meses, foi realizada audiência e estipulada indenização no valor de R$ 1,5 mil, mas que recebeu apenas R$ 750, pois teve de pagar 50% (valor bem acima dos 30% cobrados no mercado) aos advogados.

A auxiliar de serviços gerais relata que o comprovante de endereço deixado no escritório dos advogados estava em nome de sua mãe, mas que, no entanto, foi entregue à Justiça como se estivesse em seu nome. “Não sei como fizeram isso”, disse. Adriana, que ganha um salário mínimo, assegurou que a multa para ela é de pouco mais de R$ 2 mil. Até o momento em que a reportagem entrou em contato com Adriana, ela ainda não havia conseguido conversar com os advogados. Ela informou que, se eles não puderem resolver o caso, vai entrar com ação judicial contra os profissionais. “Estou com o sentimento de ter sido enganada e não posso pagar por uma coisa que não fiz”, completa.

Condenação solidária
Mesmo que as partes não soubessem das falsificações, o processo foi contra elas por conta das procurações dadas aos advogados. Nas sentenças, o juiz observa que, em primeiro plano, embora o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) seja quanto à impossibilidade de condenação solidária do advogado e da parte autora à penalidade de litigância de má-fé, cuja apuração deve, necessariamente, se dar em ação própria, consoante art. 32 da Lei n. 8.906/94 (Estatuto do Advogado), calha realçar que o presente caso afasta-se da disposição legal mencionada.

Isto porque, segundo explica nas ações, a regra do Estatuto do Advogado contempla a hipótese em que o advogado poderia ter sido ludibriado pelo cliente a intentar lide temerária ou eivada de má-fé. Contudo, afirma o magistrado nas sentenças, as condutas praticadas nos referidos processos constituem exceção, visto que possuem postulantes distintos e foram todas lastreadas em documentos particulares fraudulentos (comprovante de endereço). “E, por óbvio, devem ser reprimidas, restando inequívoco o conhecimento dos advogados pelo ilícito praticado, prejudicando sobremaneira o jurisdicionado local”, diz nas decisões.

Defesa
Em razão da contundência dos atos praticados pelas partes e seus procuradores, segundo informa o magistrado nas ações, bem como a disposição do art. 11, §1° da Lei 11.419/2006, não se trata de mero engano, constituindo erro grave. Por isso, segundo diz nas ações, dispensa-se a intimação dos mesmos para eventuais esclarecimentos nos processos, “conquanto lhes será oportunizada (em via própria) a garantia do contraditório e da ampla defesa na efetiva apuração do ilícito perpetrado contra o juízo na seara criminal”.

O magistrado determinou nas sentenças a expedição de ofícios, com a documentação necessária, ao Ministério Público, à Delegacia de Polícia de Senador Canedo e ao Tribunal de Ética e Disciplina da seccional goiana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/GO), para apuração da suposta infração ético-disciplinar em relação aos advogados. A reportagem do Portal Rota Jurídica entrou em contato com os advogados Pedro Henrique Santos de Oliveira e Thiago Vicente de Araújo Lemes por meio de ligação telefônica. Porém, foi informada de que eles só irão se pronunciar após o julgamento de um mandado de segurança interposto a favor deles pela Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB-GO.

Mandado de Segurança
O mandado de segurança mencionado pelos advogados foi proposto após 24 dias do trânsito em julgado das ações. A Comissão de Direito e Prerrogativas questiona na Turma Recursal de Senador Canedo os atos praticado pelo juiz titular do Juizado Cível e Criminal. A medida será julgada nesta quarta-feira (24).

A OAB-GO entende que o juiz não poderia ter condenado os profissionais solidariamente às partes por litigância de má-fé e nem mesmo ao pagamento de custas processuais, indenização por dano processual e honorários advocatícios para o procurador das empresas demandas sem que houvesse o processamento de ações próprias para a apuração dos casos.

Apesar da ação em favor dos profissionais, o presidente da Comissão de Prerrogativas da instituição, Alexandre Ramos Caiado, alerta que não defende a conduta dos profissionais. Inclusive, ele assegura que, caso sejam confirmadas quaisquer irregularidades, os causídicos devem ser investigados pela seccional. “A OAB-GO inclusive instaurará o procedimento ético-disciplinar com vistas a apurar as graves atitudes imputadas aos advogados”, diz.

Conforme Caiado, os atos do Judiciário ao condenar os profissionais solidariamente às partes se rotulam impregnados de ilegalidade e abuso de poder e estão eivados de nulidades. “Mais absurda ainda é a condenação ao pagamento de honorários advocatícios para o procurador das empresas demandadas, em primeiro grau de jurisdição nos juizados especiais, ao arrepio da Lei 9.099/95. Ainda mais, quando na maioria dos processos não ocorrera a citação da parte requerida e, consequentemente, nem se havia formado a triangularidade da relação processual”, declara.

No que se refere à fixação da multa imposta, Caiado afirma que se denota que não há qualquer demonstração do prejuízo à instrução processual e que a ação tenha ficado abandonada, ou se tenha tentado fraudar o Judiciário, ainda mais quando se condena sob a absurda fundamentação de que órgão esta abarrotado de processos, como se a culpa fosse dos advogados.

Além disso, ele aponta que não cabe ao Poder Judiciário o viés investigativo, até porque não foi dado direito de defesa às partes e aos advogados. “O magistrado sustentou que houve fraude/adulteração de documento particular, a fim de ludibriar o juízo, e, por conseguinte, certamente modificar a competência territorial da ação, atendendo ao interesse da parte demandante e de seus procurados, sem, contudo, propiciar às partes e aos causídicos os meios legais para se defenderem e comprovarem o endereço, limitando-se a “de ofício” a investigar, formar sua convicção, julgar, condenar fora de possibilidade jurídica (à exemplo das condenações de honorários)”, diz.

Caiado também aponta que é necessária ação própria para responsabilização do Advogado nos casos de litigância de má-fé. O Art. 70 da Lei Federal n.º 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB) prevê a competência exclusiva do Conselho Seccional da OAB para punir advogado por atos inerentes ao exercício profissional.

Parecer do MP
Parecer emitido pelo Ministério Público no mandado de segurança acata a tese da OAB-GO. Para o órgão ministerial, em caso de litigância de má-fé descabe a condenação solidária da parte faltosa e de seus procuradores, e que os danos eventualmente causados pela conduta dos advogados deverão ser aferidos em processo autônomo, nos termos do que dispõem o artigo 14, parágrafo único, do Código de Processo Civil (CPC) e artigo 32, do Estatuto da Advocacia.

Além disso, o parquet frisa que as condenações solidárias dos patronos das partes nas sanções advindas da litigância de má-fé nos vários feitos elencados, em atos de ofício e sem a devida apuração em ação própria, nos termos do Estatuto da OAB, ao qual os advogados se sujeitam exclusivamente nos termos do parágrafo único do art.14 do CPC, ocorreram, desse modo, ao arrepio da legislação processual, e por manifestamente ilegais não deverão ser mantidas, comportando sua cassação via mandado de segurança”.