Pollyana Rosa de Castro*
A promoção por ato de bravura é uma forma de reconhecimento excepcional conferida aos militares que se destacam em situações de elevado risco, pressupondo, por sua natureza, uma apuração criteriosa e individualizada da conduta praticada. No Estado de Goiás, essa modalidade de ascensão funcional está prevista na Lei nº 15.704/2006, aplicável às praças, e na Lei nº 8.000/1975, voltada aos oficiais, ambas condicionando a concessão à prévia instauração de sindicância específica.
Embora a legislação traga um conceito geral do que se entende por ato de bravura, não estabelece critérios objetivos e mensuráveis que orientem a sua valoração no caso concreto, o que pode resultar em interpretações divergentes e decisões administrativas assimétricas diante de contextos operacionais semelhantes.
Diante dessa lacuna normativa, a via judicial passou a ser recorrentemente acionada por militares que, embora tenham participado das mesmas ocorrências que ensejaram a promoção de colegas, não obtiveram o mesmo reconhecimento por parte da Administração. Observa-se, em diversos casos, que condutas operacionais com registros comparáveis nos procedimentos administrativos resultam em desfechos distintos, revelando a complexidade envolvida na aferição da bravura e a subjetividade inerente à sua apreciação no âmbito das comissões sindicantes.
Como desdobramento dessa instabilidade, consolidou-se uma jurisprudência marcada por notória divergência entre as Turmas Recursais do Estado de Goiás. Em determinados precedentes, reconheceu-se o direito à promoção a todos os militares que atuaram na mesma operação, sob a justificativa de que a bravura poderia ser estendida aos demais participantes do evento meritório. Em outros julgados, contudo, adotou-se entendimento mais restritivo, exigindo comprovação de conduta individual equiparável àquela que fundamentou a promoção deferida, mediante análise detalhada dos elementos constantes nos autos.
A partir dessa controvérsia interpretativa, foi suscitada provocação da Procuradoria-Geral do Estado de Goiás com o objetivo de uniformizar o entendimento, culminando na edição da Súmula nº 97, aprovada pela Turma de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, cujo enunciado dispõe:
“A promoção por ato de bravura constitui ato administrativo discricionário e personalíssimo, cuja concessão exige avaliação individualizada da conduta do militar, mediante sindicância específica e em local próprio, caso seja praça ou oficial, sendo incabível sua extensão automática com base apenas na participação conjunta em operação na qual outro agente tenha sido promovido.”
Regimes normativos distintos e os desafios da atuação técnica da Administração
Em 2021, a Lei nº 8.000/1975 foi alterada para delimitar com maior precisão os critérios aplicáveis à promoção por ato de bravura no âmbito dos oficiais, mediante a fixação de parâmetros mais objetivos e balizadores. Essa iniciativa evidencia o esforço da Administração Pública em uniformizar a concessão da honraria e mitigar a subjetividade nas avaliações meritórias. Essa reformulação, contudo, não foi replicada na Lei nº 15.704/2006, que rege a carreira das praças, o que resultou na manutenção de regimes distintos para o mesmo instituto, a depender da posição hierárquica do militar.
A atuação das Comissões de Promoções envolve notória complexidade, sobretudo diante da persistente imprecisão normativa que ainda envolve o conceito de “ato de bravura”. Trata-se de um juízo valorativo que demanda elevado grau de responsabilidade técnica na interpretação e aplicação dos dispositivos legais. De um lado, está a Administração, no exercício legítimo da competência para distinguir condutas verdadeiramente excepcionais; de outro, o militar que, ao se perceber preterido, recorre ao Poder Judiciário na expectativa de obter uma resposta capaz de assegurar a justiça do caso concreto e corrigir possíveis assimetrias na valoração administrativa.
A Súmula nº 97 do TJGO: fim da extensão automática e preservação do controle judicial
A edição da Súmula nº 97 não eliminou o debate judicial sobre a promoção por ato de bravura, mas firmou entendimento recente no sentido de que não há direito subjetivo à concessão automática da honraria com base exclusiva na participação conjunta em determinada operação. O enunciado reforça a exigência de análise individualizada da conduta, afastando interpretações que admitam sua extensão reflexa ou generalizada.
Importa destacar, contudo, que a súmula não afasta o controle jurisdicional sobre o ato administrativo. Apenas reforça que esse controle deve respeitar os critérios de individualização da conduta, já previstos na legislação estadual e historicamente adotados nas sindicâncias destinadas à apuração da bravura. Nesse contexto, a jurisprudência passou a concentrar-se não mais na possibilidade de extensão automática da promoção, mas na análise da legalidade e da coerência dos critérios utilizados pela Administração para distinguir condutas aparentemente equivalentes em um mesmo contexto fático.
A continuidade da judicialização, portanto, não reflete uma tentativa de reexame do mérito administrativo, mas sim a busca por parâmetros de motivação, proporcionalidade e isonomia, especialmente em razão da ausência de critérios normativos objetivos. O debate jurídico desloca-se, assim, da discussão sobre a bravura em si para a análise da legitimidade da diferenciação promovida pela Administração, avaliando se ela encontra respaldo fático, jurídico e proporcional diante dos elementos constantes nos autos.
O novo marco temporal das promoções judiciais: efeitos a partir do trânsito em julgado
Uma das decisões mais recentes e impactantes sobre o tema foi proferida no Pedido de Uniformização de Jurisprudência nº 5151631-52.2023.8.09.0072, julgado em 30 de junho de 2025. Nessa ocasião, a Turma de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais do TJGO fixou novo parâmetro temporal para os efeitos funcionais e financeiros das promoções reconhecidas judicialmente, estabelecendo que a promoção somente produz efeitos a partir do trânsito em julgado da decisão, alçando o militar ao posto ou graduação imediatamente superior àquele ocupado nessa data.
Antes da uniformização, as Turmas Recursais adotavam entendimentos divergentes: alguns julgados reconheciam os efeitos da promoção desde a deliberação da comissão; outros, apenas a partir do trânsito em julgado; em certos casos, considerava-se a graduação ocupada à época dos fatos. Essa instabilidade comprometia a segurança jurídica e dificultava a padronização da execução das decisões.
O novo entendimento rompe com a lógica reparatória que, tradicionalmente, orienta o controle de legalidade dos atos administrativos. De acordo com o Direito Administrativo clássico, a anulação de um ato ilegal impõe, como regra, o retorno à situação jurídica anterior, com efeitos retroativos (ex tunc). Ao restringir os efeitos da promoção ao trânsito em julgado, ainda que o direito seja reconhecido, limita-se sua eficácia funcional e financeira, comprometendo a recomposição integral da carreira militar atingida pela preterição.
Ainda no período anterior à uniformização, a fixação de marcos retroativos para a promoção encontrava resistência prática na fase de cumprimento das decisões, especialmente quando o militar, no curso do processo, já havia ascendido por outros critérios. Nessas situações, a execução da decisão judicial esbarrava em incompatibilidades funcionais, levando, em alguns casos, à simples reclassificação na linha hierárquica, desprovida dos efeitos concretos de uma nova ascensão. Embora tal medida tenha sido adotada como solução administrativa viável, ela não refletia a efetiva reparação da preterição reconhecida judicialmente.
Apesar das dificuldades operacionais, entende-se que essas limitações não justificariam, por si sós, o afastamento da retroatividade como instrumento de recomposição, ainda que parcial, do percurso funcional do militar. Uma alternativa de equilíbrio — compatível com os princípios da legalidade, isonomia e reparação integral — seria o reconhecimento dos efeitos da promoção até a data da última ascensão regularmente obtida, restabelecendo a ordenação hierárquica sem comprometer a estabilidade administrativa. A despeito dessa perspectiva, prevaleceu o entendimento firmado pela Turma de Uniformização, restringindo os efeitos da decisão ao trânsito em julgado.
Considerações finais
O exame jurídico da promoção por ato de bravura no Estado de Goiás revela não apenas a nobreza do instituto, mas também as dificuldades concretas para sua aplicação equitativa. A ausência de parâmetros normativos objetivos, aliada à dualidade legislativa entre oficiais e praças, torna o processo decisório vulnerável a interpretações subjetivas e, por vezes, assimétricas.
As recentes movimentações jurisprudenciais — notadamente a edição da Súmula nº 97 e a definição do marco temporal para os efeitos da promoção judicial — representam avanços relevantes na busca por maior segurança jurídica e padronização de critérios. Ainda assim, tais medidas não eliminam os desafios de fundo, sobretudo no que tange à isonomia material e à reparação adequada das preterições identificadas.
Nesse cenário, permanece atual a advertência de Rui Barbosa: “Tratar com desigualdade os iguais, ou com igualdade os desiguais, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real” (Oração aos Moços, 1920), lembrando que a verdadeira justiça exige mais do que formalismo — impõe sensibilidade, proporcionalidade e atenção às diferenças concretas de cada caso.
*Pollyana Rosa de Castro é advogada. Pós-graduada em Direito Penal Militar e Processo Penal Militar, Direito Constitucional, Direito Digital e Compliance. Atua com ênfase na defesa de militares em processos administrativos disciplinares, ações de promoção funcional e na esfera criminal perante a Justiça Militar Estadual (Auditoria Militar). Contato: contato@pollyanarosa.adv.br | www.pollyanarosa.adv.br | Instagram: @pollyanarc