Reforma trabalhista ou cultural? O impasse do mundo corporativo com o conflito de gerações

A advogada e especialista em compliance Patrícia Punder analis, na coluna desta quinta-feira (3), os principais entraves que têm dificultado a modernização das relações de trabalho no Brasil. No texto, ela aponta a defasagem da legislação trabalhista, os modelos organizacionais ultrapassados e o impacto da chegada da Geração Z ao mercado. Com linguagem direta e crítica, a autora propõe um debate sobre a necessidade de transformação coletiva e imediata.

Patricia Punder

Leia a íntegra do texto:

O mundo do trabalho está passando por uma transformação acelerada, mas o Brasil parece ainda preso a um modelo ultrapassado que já não conversa com as novas gerações. Para entender por que tantas empresas estão enfrentando dificuldades em reter talentos e em manter a motivação dos colaboradores, é necessário olhar para três grandes fatores: a legislação trabalhista arcaica, a cultura empresarial tradicional e a chegada de uma geração que não tem medo de dizer “não”.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), criada em 1943, foi um marco de proteção aos trabalhadores brasileiros. Não há dúvidas de que ela teve (e ainda tem) sua importância na defesa de direitos básicos. No entanto, o problema é que a estrutura legal brasileira continua baseada em uma lógica industrial da primeira metade do século XX.

Muitas regras ainda refletem um modelo de produção em linha de montagem, onde o foco era o controle de horários, presença física (em empresas que falam que possuem ESG) e rigidez de contratos. Em um mundo que já abraçou o trabalho remoto, a flexibilidade e a economia digital, o Brasil ainda engatinha em termos de atualização legislativa.

A Reforma Trabalhista de 2017, trouxe alguns avanços pontuais, mas na prática, ainda existe um abismo entre o que a lei prevê e o que a nova realidade de trabalho exige. Empresas e colaboradores vivem em um campo de tensão constante, tentando equilibrar produtividade, direitos e modernidade.

Além da legislação, o problema também está enraizado na cultura organizacional de muitas empresas brasileiras. Um grande número de organizações insiste em manter um modelo de gestão baseado no controle extremo, na presença física obrigatória e em estruturas hierárquicas rígidas.

O discurso é conhecido: reclamação constante sobre baixa produtividade, falta de engajamento e dificuldades em atrair talentos. Mas quando se analisa os pacotes de remuneração e benefícios, percebe-se uma enorme incoerência: salários baixos, poucas oportunidades de desenvolvimento e um ambiente de trabalho ainda pautado pela lógica do comando e controle.

Existe, inclusive, um paradoxo que precisa ser exposto, muitas empresas exigem níveis de produtividade comparáveis aos de mercados desenvolvidos, mas continuam pagando salários que mal cobrem o custo de vida básico nas grandes cidades brasileiras. Cobram alta performance, mas oferecem pouca contrapartida em qualidade de vida, benefícios e reconhecimento.

Como está a Geração Z no mercado de trabalho

Neste cenário, a chegada da Geração Z ao mercado de trabalho funciona como um verdadeiro catalisador de mudança. Esses jovens, nascidos a partir da segunda metade dos anos 90, não aceitam mais os velhos modelos sem questionar.

Eles cresceram em um mundo conectado, com acesso à informação e com uma visão mais clara dos seus direitos. Sabem identificar práticas abusivas, têm coragem de denunciar e principalmente, valorizam sua saúde mental.

O que antes era tolerado como “parte do jogo”, como assédio moral, sobrecarga de trabalho, metas inalcançáveis e ambientes tóxicos, agora é prontamente rechaçado. A Geração Z estabelece limites claros e não hesita em sair de uma empresa que não respeite esses princípios, mesmo que isso signifique abrir mão de um emprego estável.

Além disso, eles não compram mais a ideia de que trabalhar mais horas significa ser mais produtivo. São defensores de modelos baseados em entrega de resultados, flexibilidade e equilíbrio entre vida pessoal e profissional.

Existe um discurso recorrente no meio empresarial brasileiro, o de que a produtividade dos trabalhadores é baixa. Mas essa crítica muitas vezes ignora um fator fundamental, a qualidade da remuneração e das condições de trabalho.

Estudos mostram que baixos salários, falta de reconhecimento e ambientes de alta pressão reduzem drasticamente o engajamento e a performance. Não é coincidência que países com melhores índices de produtividade sejam também aqueles que oferecem salários mais justos, políticas de bem-estar e modelos de trabalho flexíveis.

Debate de gerações

Outro debate delicado, mas necessário, é o conflito de gerações. Quem deve ceder? As gerações anteriores, que enxergam o trabalho sob uma ótica de sacrifício e resistência? Ou a Geração Z, que defende equilíbrio e bem-estar?

Talvez a melhor resposta seja: ambos os lados precisam abrir espaço para o diálogo. As gerações mais antigas podem aprender novas formas de trabalhar, enquanto a Geração Z pode entender que toda transformação exige construção e responsabilidade. Não se trata de confronto, mas de evolução coletiva.

Do lado empresarial, ainda há um forte movimento de resistência. Muitos chefes continuam presos a uma visão antiquada, enxergando as demandas da Geração Z como “frescura” ou “falta de comprometimento”. Essa miopia pode custar caro.

É impossível ignorar um dado alarmante: todas as gerações, não apenas a Z, estão adoecendo dentro desse modelo de trabalho atual. Altos índices de burnout, depressão e ansiedade já afetam desde jovens em início de carreira até profissionais com décadas de experiência. O sistema, claramente, não funciona mais. Insistir nesse formato é prolongar o sofrimento coletivo. Mudar não é mais uma opção estética, é uma questão de saúde pública.

Em meio a tantas discussões sobre produtividade e redução de custos, surge um pensamento que, ainda que muitos não confessem em voz alta, já ronda as salas de reunião de executivos Brasil afora: “Será que, com a inteligência artificial, finalmente vamos nos livrar das pessoas?”. A ideia de uma operação enxuta, sem atestados médicos, sem licenças maternidade ou reclamações sobre saúde mental soa para alguns como o paraíso da eficiência. Um ambiente onde as máquinas não pedem aumento, não questionam ordens e entregam resultados 24 horas por dia.

Mas fica o alerta, empresas são feitas de pessoas. Clientes também são pessoas. E no final das contas, até a melhor IA depende de humanos criativos, críticos e emocionalmente engajados para funcionar de forma ética, inteligente e sustentável. O sonho de um mundo corporativo sem gente pode parecer tentador para alguns, mas é no fundo, um enorme tiro no pé.

Quem deve mudar: As leis ou o mercado?

Essa é a pergunta que ninguém parece querer responder com clareza. A mudança deve partir da revisão urgente da legislação trabalhista, ou das próprias empresas, que precisam se modernizar independentemente da lei? A verdade é que esperar uma grande reforma legislativa pode ser uma ilusão. Enquanto isso, cabe ao mercado começar a agir: criar políticas internas mais flexíveis, adotar modelos de trabalho híbrido, repensar benefícios e acima de tudo, colocar a saúde mental dos colaboradores como prioridade estratégica.

*Patricia Punder é advogada e compliance officer com experiência internacional. Professora de Compliance no pós-MBA da USFSCAR e LEC – Legal Ethics and Compliance (SP). Uma das autoras do “Manual de Compliance”, lançado pela LEC em 2019 e Compliance – além do Manual 2020.