O princípio esquecido: como uma regra antiga pode salvar a recuperação judicial do produtor rural

Amanda Saavedra*

No Brasil, uma das etapas essenciais da recuperação judicial é a habilitação das dívidas, na qual os credores devem submeter seus créditos ao administrador judicial para que este possa identificá-los e classificá-los corretamente. Esta fase foi projetada para desenvolver uma estrutura geral e fundamental para esclarecer os direitos de cada credor no plano de recuperação.

Nesse sentido, para assegurar a transparência e a legalidade do processo de reestruturação, é fundamental que todos os envolvidos — credores, devedores e auxiliares da Justiça — não apenas se atenham à análise rigorosa da legislação, mas também adotem princípios que promovam maior celeridade e eficiência no andamento processual.

Um exemplo prático que ilustra a relevância de uma análise cuidadosa dos créditos durante a fase de habilitação ocorreu com um produtor rural, cuja dívida estava formalizada por meio de um Instrumento Particular de Confissão de Dívida, garantido por Cédulas de Produto Rural. Ocorre que, ao analisar de forma isolada a estrutura do “contrato garantia”, o administrador judicial classificou o crédito como extraconcursal, desconsiderando o contexto integral da operação que deu origem à dívida.

Dessa forma, evidencia-se a realidade enfrentada diariamente pelos escritórios especializados em recuperação judicial: a classificação dos créditos sendo conduzida com um enfoque estritamente legalista, resultando no afastamento automático de qualquer operação representada por CPR com liquidação física da classificação como crédito concursal.

Passemos, então, à análise do tema.

A Lei nº 8.929/1994, que institui a Cédula de Produto Rural (CPR), estabelece expressamente, em seu artigo 11, que não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os créditos e garantias cedulares vinculados à CPR com liquidação física, ou ainda àquelas representativas de operações de troca por insumos (barter).

A título explicativo, entende-se que a operação de Barter é uma modalidade de crédito alternativo, pois, trata-se de um acordo pré-colheita em que o produtor rural adquire insumos agrícolas para o cultivo e compromete-se a pagar por esses materiais com a produção futura de sua lavoura, ou seja, o pagamento é realizado com os produtos agrícolas que serão colhidos.

Contudo, é essencial refletir sobre a aplicabilidade do princípio da acessoriedade na análise desses créditos contraídos pelo devedor em recuperação, de forma a garantir que a correta formalização da relação entre credores e devedor permita a adequada aplicação do instituto da recuperação judicial, assegurando a proteção jurídica ao produtor rural.

Importante destacar que uma interpretação excessivamente rígida da literalidade da norma pode não refletir a verdadeira natureza da relação obrigacional entre as partes, tampouco observar o princípio da boa-fé objetiva, que deve nortear o processo recuperacional.

Na prática, ainda que contestado pelas administradoras judiciais, a jurisprudência já enfrentou a questão e reconhece que, embora estruturada como CPR física, quando esta é emitida como garantia de outro instrumento de crédito, perde sua característica de abstração. Nesses casos, a CPR não configura uma operação autônoma, mas sim uma garantia subordinada, vinculada ao cumprimento da obrigação principal pactuada entre as partes.

Nesse sentido, o Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais há muito já se posiciona de forma clara quanto à caracterização da CPR como negócio jurídico acessório, quando vinculada a um contrato principal. Como bem pontuado em decisões judiciais “a cédula de produto rural emitida em garantia a instrumento particular de confissão de dívida, perde a característica da abstração”[1] e, ainda, “sendo a Cédula de Produto Rural mera garantia da dívida principal, que fora comprovadamente quitada, não há que se falar em execução da obrigação de entregar sacas”[2].

Essa interpretação reforça a ideia de que a constituição de garantias deve estar em consonância com o compromisso principal firmado entre as partes, tornando-as inseparáveis do contrato principal.

Ressalte-se que um dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro é o da “accessio cedit principali”, segundo o qual o acessório segue a sorte do principal. Este princípio, originado no direito romano, tem sido amplamente adotado no direito brasileiro, estando positivado desde o Código Civil de 1916 (art. 59), o qual estabelecia que “salvo disposição especial em contrário, a coisa acessória segue a principal”. O Código Civil de 2002, em seu artigo 92, reforça tal entendimento ao dispor que “principal é o bem que existe sobre si, abstrata ou concretamente; acessório, aquele cuja existência supõe a do principal”.

Nesta ótica, reafirma-se que uma interpretação meramente legalista e superficial de determinado instrumento de crédito pode conduzir ao equívoco de qualificá-lo como obrigação autônoma e extraconcursal. Ao passo que uma análise mais acurada poderá revelar que o crédito em questão não apenas possui origem anterior ao pedido de recuperação judicial, como também se reveste de força executiva extrajudicial, o que o enquadra, de forma inequívoca, como crédito concursal, nos termos do artigo 49 da Lei de Recuperação de Empresas.

Desse modo, em que pese a literal disposição do art. 11 da Lei 8.929/94, sua aplicação pressupõe a existência de uma CPR autônoma, e não acessória a outro contrato principal, de modo que interpretação diversa representaria violação ao princípio do par conditio creditorum, permitindo que credores de mesma natureza recebessem tratamento distinto no processo recuperacional.

Ademais, mesmo nos casos em que se discute a caracterização da operação como barter (troca de insumos por produto futuro), não se pode desconsiderar a estrutura jurídica adotada pelas partes. Se o negócio principal foi formalizado por meio de um contrato principal, com pagamento previsto em dinheiro, a natureza jurídica da CPR emitida em garantia se torna indissociável desse contrato principal.

Dessa forma, ao optarem por essa estrutura jurídica — contrato principal garantido por CPR acessória —, as partes assumem as consequências legais dessa escolha, inclusive quanto à submissão aos efeitos da recuperação judicial.

Exposto isto, conclui-se que tanto o Juízo quanto o Administrador Judicial devem observar um dever reforçado de cautela, especialmente nas hipóteses em que uma das partes está submetida ao regime de recuperação judicial. Nesses casos, é imprescindível a adoção de medidas que resguardem a efetividade do plano de soerguimento, evitando-se decisões que, embora eventualmente bem-intencionadas, possam comprometer sua execução, desorganizar o regular andamento do processo recuperacional ou, ainda, inviabilizar a preservação da função social da empresa em crise

Nesse ínterim, medidas unilaterais que excluam tais créditos do processo recuperacional podem causar danos irreparáveis não apenas aos devedores em recuperação, mas a todos os credores envolvidos, em afronta aos princípios da paridade e da coletividade que regem o instituto da recuperação judicial.

Por fim, a correta qualificação de um crédito como concursal ou extraconcursal deve observar, como critério determinante, o marco temporal do fato gerador do inadimplemento da obrigação. Assim, ainda que o contrato preveja a entrega futura de grãos, caso essa obrigação acessória decorra de uma relação contratual principal já vigente à data do pedido de recuperação judicial, o crédito dela oriundo assume, de forma inequívoca, natureza concursal.

Assim sendo, a aplicação do princípio da acessoriedade para fins de classificação de CPRs como créditos concursais, quando originadas como garantias de um contrato principal, é medida de prudência, coerência e respeito à hierarquia legal entre os credores, preservando a ordem e a paridade do processo de recuperação, e assegurando sua efetividade enquanto instrumento de soerguimento empresarial.

*Amanda Saavedra é advogada do escritório João Domingos Advogados.

Referências

[1] TJ-MG – AC: 10694050280312001 Três Pontas, Relator.: Eduardo Mariné da Cunha, Data de Julgamento: 14/08/2008, Câmaras Cíveis Isoladas / 17ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 03/09/2008

[2] (TJ-MG – Apelação Cível: 5000184-11.2021.8.13.0481 1 .0000.24.163282- 7/001, Relator.: Des.(a) Marco Aurelio Ferenzini, Data de Julgamento: 09/05/2024, 14ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 10/05/2024