Lawfare: entre o Direito e a guerra, a luta pela verdade no Processo Penal

A coluna desta quarta-feira (14) foi escrita a quatro mãos. Para abordar o tema Lawfare: entre o Direito e a guerra, a luta pela verdade no Processo Penal contei com a ajuda do criminalista Arthur Camargo Novais.

Leia a íntegra do texto:

Em tempos de crescente judicialização da política e espetacularização da justiça penal, um fenômeno ganha destaque e preocupa juristas e defensores do Estado de Direito: o Lawfare. Trata-se do uso estratégico do sistema jurídico como instrumento de guerra política, em que o processo penal, em vez de assegurar garantias fundamentais, é transformado em ferramenta de perseguição e estigmatização. Este artigo analisa os impactos desse fenômeno sobre as instituições democráticas, destacando o papel fundamental do advogado criminalista na contenção dos abusos e na preservação da legalidade.

A guerra travestida de legalidade

Em tempos de tensões políticas e polarizações, o sistema de justiça pode ser convertido em campo de batalha. O Lawfare – fusão de “law” (lei) e “warfare” (guerra) – consiste na manipulação das estruturas legais e judiciais para fins de destruição política, empresarial ou pessoal de adversários. Não é uma simples violação de direitos, mas uma estratégia racionalizada de poder, revestida de legalidade aparente.

Essa prática, embora sutil e tecnicamente complexa, mina os alicerces do Estado Democrático de Direito ao corroer as garantias que deveriam proteger todos os cidadãos. A seletividade e o uso instrumental do processo penal tornam-no um meio de punição antecipada, muitas vezes sem necessidade de condenação.

O papel da mídia e o tribunal da opinião pública

A mídia cumpre função decisiva nesse processo. Ao se aliar à lógica do espetáculo, transforma a investigação em novela, o réu em vilão e o promotor em herói. A informação é reduzida a slogans morais: “corrupção”, “impunidade”, “crime organizado”, sem a devida contextualização ou respeito aos limites processuais.

Essa manipulação compromete o devido processo legal. Como ensina a filósofa Shoshana Zuboff, vivemos sob a lógica do “capitalismo de vigilância”, no qual dados, reputações e comportamentos são continuamente monitorados e explorados. Em investigações midiáticas, isso se reflete na destruição pública de reputações baseada em dados muitas vezes imprecisos ou ilegais.

A inversão das garantias e o inimigo penal

Ferrajoli, ao formular o garantismo penal, nos lembra que o Direito Penal é o ramo que mais exige limites ao poder estatal. Ele deve funcionar como ultima ratio, e não como arma de combate político. O Lawfare inverte essa lógica: o Direito passa a ser instrumento de dominação e silenciamento.

A ideia do “inimigo do Estado”, historicamente presente em regimes autoritários, ressurge nesse cenário. Não se julga mais uma conduta, mas uma identidade: a pessoa do réu é desconstruída e rotulada como “perigosa”, “criminosa” ou “corrupta”, mesmo sem condenação transitada em julgado.

O papel do advogado criminalista: resistência e reconstrução

Nesse ambiente adverso, o advogado criminalista não é apenas defensor técnico – ele é agente de contenção do arbítrio. Sua função ultrapassa o processo: ele deve reconstituir a imagem do acusado, articular uma narrativa contra-hegemônica, preservar a racionalidade do Direito e denunciar o uso distorcido da Justiça.

Para tanto, é fundamental a atuação ainda na fase investigativa, buscando o controle judicial dos atos da polícia e do Ministério Público, assim como a construção de uma narrativa defensiva sólida e pública. A simples passividade diante do discurso acusatório pode ser fatal.

Instrumentos de enfrentamento: acesso e voz

Entre as principais ferramentas constitucionais estão o acesso amplo aos autos da investigação – indispensável para fiscalizar a legalidade dos procedimentos e desmontar acusações frágeis – e a sustentação oral, que permite ao defensor apresentar publicamente os desvios, abusos e manipulações do processo.

Como demonstrado por Gustavo Badaró, a construção da verdade no processo penal exige racionalidade probatória e epistemologia rigorosa. O advogado deve exigir que as decisões estejam baseadas em provas verificáveis, e não em suposições ou pressões midiáticas.

Um alerta para a sociedade

O fenômeno Lawfare não é uma ameaça restrita a políticos ou empresários. Qualquer cidadão que entre em rota de colisão com interesses poderosos pode ser alçado à condição de “inimigo”. A arbitrariedade, uma vez instaurada, não distingue ideologias nem classes sociais.

Nesse sentido, a luta contra o Lawfare é uma luta de todos aqueles que valorizam a liberdade, a dignidade humana e o Estado de Direito. Defender o acusado é, muitas vezes, defender a própria Constituição.