O advogado criminalista e consultor de Licitações Augusto Cândido é quem assina a coluna desta quinta-feira (13). Especialista em Licitações e Contratos pelo Instituto de Pós Graduação (IPOG), ele escreve sobre a (in)aplicabilidade do crime de fraude em licitação no Sistema de Registro de Preços. Também é especializando em Jurisprudência Penal pelo CEISC; e Compliance Anticorrupção (CPC-A) pela Legal, Ethics & Compliance.

Leia a íntegra do texto:
O Sistema de Registro de Preços (SRP) é um dos principais instrumentos de contratação pública no Brasil, permitindo à Administração Pública adquirir bens e serviços de maneira eficiente e econômica. No entanto, o modelo do SRP gera debates no âmbito jurídico, especialmente sobre a possibilidade de sua configuração como contrato administrativo ou licitação e sua eventual sujeição ao crime de fraude em licitação, previsto no artigo 337-L do Código Penal.
O SRP é Contrato Administrativo?
A criação do Sistema de Registro de Preços (SRP) inicialmente com o Decreto nº 3.931/2001 regulamentando o artigo 15 da Lei 8.666/1993 o qual permaneceu em vigência até 23 de janeiro de 2013 quando houve a edição do Decreto 7.892/2013, ainda na vigência da Lei 8.666/1993, onde ambos permaneceram em vigência até a 30 de dezembro de 2023 com a publicação da Nova Lei de Licitações – Lei 14.133/2021 que trouxe toda a uma nova legislação a ser regulamentada e no ano de 2023 publicou-se o Decreto 11.462/2023 que regulamenta os art. 82 a art. 86 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, para dispor sobre o sistema de registro de preços para a contratação de bens e serviços, inclusive obras e serviços de engenharia, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional.
O sistema de registro de preços (SRP) é uma ferramenta auxiliar bastante conhecida e utilizada, prevista inicialmente no antigo art. 15, §§ 1º a 8º, da Lei nº 8.666/93 e no art. 32 da Lei nº 12.462/11 (RDC), ambos já revogados. E com a Lei 14.133/21 houve um novo marco nas licitações e contratos, essa ferramenta é mantida para aquisições, com algumas alterações para alinhar o processo às boas práticas e à jurisprudência das cortes de contas, especialmente a federal, com o objetivo de proporcionar mais agilidade aos entes públicos. Embora o dispositivo seja autoaplicável, regulamentos em nível federal, estadual ou municipal podem estabelecer certas restrições.
A ata de registro de preços não é um instrumento contratual, possuindo natureza jurídica própria, conforme já decidido pelo Tribunal de Contas da União desde 2010:
Nesse sentido, o Ministro Augusto Sherman Cavalcanti deixou consignado no Acórdão 3.273/2010-TCU-2ª Câmara: “a ata firma compromissos para futura contratação, ou seja, caso venha a ser concretizado o contrato, há que se obedecer às condições previstas na ata”. E complementou: “a ata de registro de preços impõe compromissos, basicamente, ao fornecedor (e não à Administração Pública), sobretudo em relação aos preços e às condições de entrega. Já o contrato estabelece deveres e direitos tanto ao contratado quanto ao contratante, numa relação de bilateralidade e comutatividade típicas do instituto”.
A ata de registro de preços caracteriza-se como um negócio jurídico em que são acordados entre as partes, Administração e licitante, apenas o objeto licitado e os respectivos preços ofertados. A formalização da ata gera apenas uma expectativa de direito ao signatário, não lhe conferindo nenhum direito subjetivo à contratação. Acórdão 1285/2015-Plenário | Relator: BENJAMIN ZYMLER ÁREA: Licitação | TEMA: Registro de preços | SUBTEMA: Ata de registro de preços outros indexadores: Natureza jurídica Publicado: Informativo de Licitações e Contratos nº 244 de 17/06/2015 Boletim de Jurisprudência nº 84 de 15/06/2015
Para compreender a (in)aplicabilidade do crime de fraude em licitação ao SRP, é necessário distinguir esse instrumento dos contratos administrativos convencionais, ou seja, ambos têm natureza jurídica distintas.
Diferentemente dos contratos administrativos firmados após um procedimento licitatório, a ata de registro de preços não estabelece uma relação obrigacional entre as partes. Os órgãos públicos podem utilizar os preços registrados, mas não há compulsoriedade na contratação. Essa característica levanta dúvidas sobre a possibilidade de enquadramento de irregularidades no SRP como fraude em licitação, uma vez que a tipificação penal exige a existência de um contrato formalmente celebrado.
Princípios da Legalidade e da Tipicidade Penal
No Direito Penal, a legalidade e a tipicidade são princípios fundamentais que garantem que ninguém pode ser punido por um ato que não esteja expressamente previsto em lei. A Constituição Federal, no artigo 5º, inciso XXXIX, estabelece que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. A tipicidade, por sua vez, exige que a conduta se encaixe perfeitamente na descrição da norma penal.
No caso do SRP, tentar enquadrá-lo como um contrato administrativo para fins de aplicação penal representaria um desvio desses princípios. O Tribunal de Contas da União (TCU) e os tribunais superiores reforçam que a ata de registro de preços não possui os elementos essenciais de um contrato, impossibilitando sua inclusão na tipificação penal de fraude em licitação.
Impactos da Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021)
Problema antigo com roupagem nova, o artigo 96 da Lei 8.666/93 já teve julgados e interpretações restritivas devido a sua redação precária sem a devida “conexão” com o direito administrativo, o Superior Tribunal de Justiça no REsp 1407255/SC, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Quinta Turma, julgado em 21/08/2018, decidiu que “1. O art. 96 da Lei n. 8.666/1993 apresenta hipóteses estreitas de penalidade, entre as quais não se encontra a fraude na licitação para fins de contratação de serviços. 2. Considerando-se que o Direito Penal deve obediência ao princípio da taxatividade, não pode haver interpretação extensiva de determinado tipo penal em prejuízo do réu, atualmente em vigência temos o artigo 337-L do Código Penal.
Com a substituição do artigo 96 da Lei nº 8.666/93 pelo artigo 337-L do Código Penal, a tipificação penal das fraudes em licitação se ampliou. Entretanto, a exigência de um contrato formalmente celebrado se manteve. Como a ata de registro de preços não constitui um contrato em si, sua inclusão no tipo penal exigiria uma alteração legislativa específica.
Além disso, a Lei nº 14.133/2021 estabeleceu regras mais rigorosas para o uso do SRP, incluindo maior transparência e controle sobre adesões a atas de registro de preços, exigências mais detalhadas para comprovar a vantajosidade econômica e mecanismos de fiscalização mais eficientes.
Conclusão: A inaplicabilidade da fraude em licitação ao SRP
Com base na análise realizada, conclui-se que o direito penal está em desacordo com o direito administrativo, algo essencial para os crimes contra a administração pública uma vez que todos os crimes são norma penal em branco.
Além disso, a interpretação extensiva do artigo 337-L do Código Penal seria incompatível com os princípios da legalidade e tipicidade. Dessa forma, eventuais irregularidades no uso do SRP devem ser abordadas no âmbito do Direito Administrativo, podendo gerar sanções administrativas e civis, mas não necessariamente penais.
Se o legislador desejar incluir expressamente o SRP na tipificação penal de fraude em licitação, seria necessário um ajuste na legislação. Até que isso ocorra, qualquer tentativa de enquadramento penal carece de respaldo jurídico e pode gerar insegurança nas contratações públicas. Isso porque um ato de registro de preços não se enquadra nem como licitação propriamente dita, nem como um contrato administrativo, mas sim como um instrumento auxiliar.
Ao tentar enquadrar condutas relacionadas ao SRP nesse tipo penal, acaba-se violando diretamente os princípios da legalidade e da tipicidade, pilares fundamentais do Direito Penal. Interpretar o registro de preços como um “contrato” para fins penais configuraria uma aplicação em in malam partem, algo vedado pelo ordenamento
Desta forma, pode-se concluir que não há base legal para se aplicar o crime de fraude à licitação ou contrato no contexto do SRP. Qualquer tentativa nesse sentido exige-se uma alteração legislativa específica, de forma a evitar interpretações extensivas que pudessem levar à insegurança jurídica e arbitrariedade na aplicação do Direito Penal.
Texto adaptado de um artigo científico apresentado e aprovado no curso de MBA em Licitações e Contratos pelo IPOG pelo autor.