Eliane Cardoso Guimarães e Kowalsky do Carmo Costa Ribeiro*
A reserva de iniciativa legislativa do chefe do Poder Executivo, prevista pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por muito tempo foi interpretada de forma ampliativa, inviabilizando intervenções concretas iniciadas por parlamentar para a implementação de políticas públicas e engessando o exercício da função legislativa.
Diante disso, os parlamentares municipais, sobretudo em razão da competência legislativa Municipal delimitada pelo art. 30 da CRFB/88, restrita ao interesse local, foram restringidos em sua atuação pelo alargamento da iniciativa legislativa privativa do prefeito.
No tocante à Casa Legislativa Goianiense, a pesquisa realizada por Lucas Cavalcanti Velasco (que resultou na publicação da obra “Racionalidade Legislativa e Produção Normativa das Políticas Públicas”), revelou, mediante a análise de 5.462 (cinco mil, quatrocentos e sessenta e duas) proposições legislativas no período de 2009 a 2018, assim como em outros Parlamentos Municipais, um controle da agenda normativo-decisória pelo Poder Executivo.
A sociedade, entretanto, continuamente demanda por um Legislativo responsivo às necessidades sociais, que não fique circunscrito a iniciar proposições legislativas instituidoras de comendas e datas comemorativas, mas que atue por soluções concretas para questões locais que afetam diretamente o cotidiano dos cidadãos.
O crescimento de movimentos sociais, a ampliação do acesso à informação por meio das redes sociais e o surgimento de novas ferramentas de participação digital têm pressionado o Parlamento a adotar uma postura mais responsiva.
Esse cenário colaborou para que o Supremo Tribunal Federal (STF) passasse a destacar que as iniciativas privativas do chefe do Poder Executivo, previstas no artigo 61, § 1º da Carta Magna, devem ser interpretadas de forma restritiva. Adotada a técnica da independência e harmonia entre os poderes (art. 2º da CRFB/88), com efeito, deve-se optar por interpretação que potencialize o exercício da função legislativa, resguardando a missão institucional do Parlamento.
Tal virada jurisprudencial sedimentou-se quando o Tribunal Excelso, ao julgar o tema 917 em repercussão geral, definiu a seguinte tese: “Não usurpa competência privativa do Chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos (art. 61, § 1º, II,”a”, “c” e “e”, da Constituição Federal).”
Reafirmado o princípio democrático, há claro fortalecimento do Poder Legislativo municipal (espaço político mais próximo dos cidadãos), que, então, crescentemente, tem assumido papel proativo na concretização de direitos fundamentais, engajando-se na promoção de políticas de interesse público, sem violar a separação de poderes.
Afinal, consoante afirma Maria Paula Dallar Buccii , as “grandes linhas das políticas públicas, as diretrizes, os objetivos, são opções políticas que cabem aos representantes do povo, e, portanto, ao Poder Legislativo, que as organiza sob a forma de leis”.
No âmbito do Município de Goiânia, dentre outros exemplos da produção normativa de iniciativa parlamentar concretizadora de direitos fundamentais, a Lei Municipal nº 10.643, de 15 de junho de 2021, assegura às gestantes com deficiência auditiva o direito a um intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras) durante as consultas de pré-natal e no parto. Buscou o legislador concretizar direitos fundamentais de pessoas com deficiência, garantindo inclusão social e acessibilidade, em prestígio ao princípio da igualdade; tudo em consonância com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (a Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015).
O prefeito de Goiânia, entretanto, sob a alegação de que a legislação representaria invasão na reserva da administração, criando despesa para a administração pública, ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade.
A criação de despesas públicas, todavia, como já explanado, não pode mais ser invocada como um obstáculo à concretização de direitos fundamentais. Em conformidade com o definido no tema 917 do STF, e tendo em vista o princípio da solidariedade (art. 3º, incisos I e IV, CRFB/88) e a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais (art. 5º, §1º, CRFB/88), o Poder Legislativo não só pode, como tem a obrigação de editar leis que promovam políticas públicas.
Justamente por isso, o acórdão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, após forte atuação da Procuradoria da Câmara Municipal de Goiânia, foi reformado pelo Supremo Tribunal Federal, conforme a decisão monocrática do ínclito ministro Dias Toffoli, que deu provimento ao Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.492.397 – GOIÁS, para declarar a constitucionalidade da norma, ressaltando que:
“além de não verificada a inconstitucionalidade formal da legislação municipal, tendo em vista estar em conformidade com a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, notadamente com o Tema n° 917 de Repercussão Geral, ainda constato a plena constitucionalidade material da lei municipal aqui questionada, por seu alinhamento aos ditames constitucionais referentes à proteção das pessoas com deficiência.”
A nova conformação do Poder Legislativo municipal, em resposta à demanda da população por um parlamento mais atuante e representativo, revela um movimento de fortalecimento da autonomia legislativa local na promoção de direitos fundamentais. A jurisprudência do STF, mormente a tese fixada no tema 917, demonstra que o Legislativo municipal pode – e deve – atuar de forma mais assertiva na proposição de políticas públicas que atendam aos interesses da população, sem ferir a separação de poderes.
O caso da Lei Municipal nº 10.643/2021, do Município de Goiânia, cuja constitucionalidade foi reconhecida pela Corte Constitucional, é um exemplo concreto de como o Legislativo municipal pode promover direitos fundamentais e sociais por meio de proposições normativas sobre política pública.
*Eliane Cardoso Guimarães é Procuradora Jurídica Legislativa da Câmara Municipal de Goiânia.
*Kowalsky do Carmo Costa Ribeiro é Procurador-Geral da Câmara Municipal de Goiânia.