Cessão de créditos em insolvência: é indevido limite de 150 salários a créditos trabalhistas cedidos

Letícia Marina da Silva Moura*

A 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial de São Paulo, ao julgar o Agravo de Instrumento nº 2101562-81.2024.8.26.0000, consolidou um importante entendimento sobre a cessão de crédito nos processos de insolvência empresarial.

No caso paradigma, o cessionário havia adquirido à título oneroso (cessão de crédito) os direitos creditórios de oito credores trabalhistas distintos durante a fase de recuperação judicial. Todavia, durante o trâmite da fase de soerguimento, as devedoras tiveram a sua falência decretada pelo Poder Judiciário.

Durante a transição de recuperação judicial para falência, o juiz responsável pelo caso considerou todos os créditos adquiridos pelo cessionário como um único crédito. Com isso, aplicou-se o limite de 150 salários-mínimos previsto no art. 83, I da Lei nº 11.101/2005. O saldo restante foi classificado como crédito quirografário, o que retirou a prioridade de recebimento que esse credor inicialmente possuía, conforme a ordem de preferências para o pagamento dos créditos estabelecida para os casos de falência (art. 83 e 84 da Lei nº 11.101/2005).

Assim, o Tribunal enfrentou a seguinte questão: no caso de cessão de crédito, o limite de 150 salários-mínimos previsto no art. 83, I da Lei nº 11.101/2005 se aplica aos credores individualmente ou ao total dos créditos cedidos?

Em uma breve retrospectiva, a regulamentação da cessão de crédito nos processos de recuperação judicial e falência passou por significativas mudanças ao longo do tempo. Antes das alterações advindas pela Lei nº 14.112/2020 à Lei nº 11.101/2005, prevalecia a norma de que os créditos trabalhistas cedidos a terceiros eram considerados quirografários. Evidentemente, a perda da preferência dos créditos trabalhistas, que passavam a ser quirografários, especialmente em casos de falência, desestimulava negociações sobre esses créditos, uma vez que o cessionário enfrentava riscos mais elevados ao firmar o negócio.

Assim, visando fortalecer o mercado secundário de cessão de créditos, o legislador introduziu a norma atualmente em vigor, que orientou a interpretação do caso mencionado: os créditos cedidos, independentemente do título, manterão sua natureza e classificação (art. 83, § 5º da Lei nº 11.101/2005), regra que se aplica tanto na falência quanto na recuperação judicial. Por certo, é salutar que essas transações sejam comunicadas aos participantes do processo concursal (art. 39, § 7º da Lei nº 11.101/2005), em que pese não tenha o legislador estabelecido quais serão as consequências da omissão do credor quanto à referida comunicação imediata.

Sobre essa relevante alteração, Daniel Carnio Costa e Alexandre Nasser de Melo [1] prelecionam que “essa alteração na lei tem por objetivo valorizar os créditos trabalhistas no mercado secundário de cessão de créditos. No regime anterior o crédito trabalhista tinha pouco valor para cessão, na medida que o cessionário seria incluído na classe dos credores quirografários para fins de recebimento. Agora, com tal mudança, prestigia-se o crédito trabalhista na cessão, aumentando seu valor nesse mercado secundário e abrindo mais uma possibilidade para os credores trabalhistas buscarem o recebimento de seus créditos”.

Nesse contexto, a norma mencionada está em consonância com o Código Civil, que estabelece que, ao ceder um crédito, todos os seus acessórios são transferidos ao cessionário. Em outras palavras, todos os direitos relacionados ao crédito, incluindo suas preferências, são transferidos para o novo titular.

Sob essa ótica, a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial de São Paulo entendeu que aplicar a redução prevista no art. 83, inciso I, da Lei nº 11.101/2005 de forma global, tratando todos os créditos cedidos como um único crédito apenas por terem sido adquiridos pela mesma pessoa (cessionário), e reclassificar o valor que exceder 150 salários-mínimos como quirografário, produziria o mesmo efeito do revogado §4º do referido artigo. Isso resultaria na desvalorização dos créditos cedidos e desestimularia o mercado secundário de compra de créditos.

Nesse sentido, a Câmara recomendou que a interpretação da lei siga a intenção do legislador, que, ao revogar o §4º do art. 83, optou por incentivar o mercado de compra e venda de créditos falimentares, evitando impor limitações ou prejuízos ao cessionário.

Portanto, a solução adotada foi justamente garantir ao cessionário o direito de assumir a posição de cada credor cedente, aplicando a limitação do art. 83, inciso I, da Lei nº 11.101/2005 de forma individual para cada crédito.

*Letícia Marina da Silva Moura é advogada e jornalista. Vice-coordenadora do núcleo de Direito Privado do IEAD. Especialista em Direito Empresarial e Falência e Recuperação de Empresas. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Processo Recuperacional e Falimentar da Fundação Arcadas/USP.

Referência

[1] COSTA, Daniel Carnio. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005 / Daniel Carnio Costa, Alexandre Correa Nasser de Melo. Curitiba: Juruá, 2021.