Jovem envolvido no assassinato do índio Galdino é reprovado em concurso da polícia pela vida pregressa

Um adolescente comete um ato infracional. Cumpre medida socioeducativa, e, a partir desse momento, a ficha dele fica completamente limpa. Mais: ele não poderá ser discriminado ou passar por qualquer tipo de preconceito pela infração. É o que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Entretanto, a reprovação de um dos envolvidos no assassinato do índio Galdino no concurso da Polícia Civil do DF, durante a fase de sindicância da vida pregressa e investigação social, abre o debate para a possível exclusão dele no certame pelo delito praticado há 17 anos, enquanto era adolescente. À época, ele cumpriu medida socioeducativa de quatro meses.

O nome de G. constava como aprovado em todas as fases do concurso público — iniciado no ano passado. Ele foi considerado apto depois de passar em provas objetivas, discursivas, de capacidade física e exames biométricos e psicológico. Na última relação, divulgada na tarde de ontem pelo Centro de Seleção e de Promoção de Eventos (Cespe), ele não aparece mais como futuro agente da PCDF.  O resultado do julgamento final saiu depois de reportagem do Correio apontar a controvérsia sobre o ingresso de G. na carreira.

A Polícia Civil não detalhou se o crime em que ele teve participação, com outros quatro rapazes, foi levado em conta durante a análise para o ingresso dele na corporação. Mesmo reprovado nesta última fase, ele poderá recorrer à Justiça para tentar anular a decisão e ingressar na PCDF.

Advogado especialista em concursos públicos e diretor jurídico da Associação Nacional de Apoio e Proteção aos Concursos (Anpac), Leonardo de Carvalho acredita que G. conseguirá assumir o cargo. “Juridicamente, não vejo impedimento. Há uma série de jurisprudências favoráveis a ele. O próprio governo estimula que a iniciativa privada dê emprego a ex-condenados, e o Estado mesmo não vai dar? Quer dizer que eu posso oferecer esse trabalho e o Estado não?”, questiona o defensor. Na visão de Carvalho, desclassificar alguém por delito com pena já cumprida é ferir a lei. “Não existe punição perpétua. Depois que pagou pela pena, o indivídulo deve ser reintegrado à sociedade”, complementa.

As análises que tiraram G. da lista de aprovados são defendidas pelo jurista e especialista em direito penal Luiz Flávio Gomes, juiz aposentado. Ele ressalta a importância de ter avaliações de vida pregressa e social em concursos como o da polícia. “As regras dos editais já preveem esse tipo de investigação, que não é só de antecedentes criminais, mas de comportamento social. Tem gente que nunca cometeu um crime, mas não pode ocupar a área de segurança ou o cargo de juiz ou promotor pela vida que leva na sociedade”, detalha. O ex-magistrado explica que, quando um adolescente comete um ato infracional e cumpre medida socioeducativa, fica sem qualquer antecedente. Diferentemente de um adulto, que, mesmo depois de ficar preso, ainda precisa de dois anos sem praticar qualquer delito para ter a certidão de nada consta. “Mas uma coisa é a lei, outra é o que o povo quer. E o povo quer vingança eterna, quer que seja punido eternamente. Aí teríamos que mudar a Constituição”, complementa Gomes.

O promotor de Justiça da Promotoria de Defesa da Infância e da Juventude do Ministério Público do DF e Territórios (MDFT) Pedro Oto de Quadros defende que, se uma infração cometida por um menor de idade for levada em consideração na vida adulta, há claramente um descaso do Estado com os direitos da criança e do adolescente. “A administração pública e a Polícia Civil — que é órgão público — só podem fazer o que a lei determina. Antecedentes de um adolescente não podem ser levados em conta após o cumprimento da medida e da vida adulta”, garante. “Ele tem o direito de buscar o motivo de ter sido reprovado. Se for por conta da infração, isso é um absurdo”, acrescenta Oto. Mais uma vez, a reportagem tentou localizar G. ou algum advogado dele, mas não conseguiu contato.

Crueldade

Galdino Jesus dos Santos teve o corpo incendiado enquanto dormia em um ponto de ônibus na Entrequadra 703/704 Sul, em 20 de abril de 1997. G.N.A.J. era o único adolescente entre os cinco jovens que atearam fogo ao índio, que morreu aos 44 anos. À época, G. tinha 17 anos, Max Rogério Alves, 19, Tomas Oliveira Almeida, 18, Eron Chaves Oliveira, 19, Antônio Novély Vilanova, 19. Os quatro jovens maiores de idade foram denunciados à Justiça por homicídio triplamente qualificado, com pena de 12 a 30 anos de prisão, por motivo fútil, sem chance de defesa à vítima e requintes de crueldade.

O crime foi julgado em novembro de 2001. Eles foram condenados a 14 anos de prisão. G.N.A.J. cumpriu quatro meses de medida socioeducativa.

Ponto crítico

Há algum impedimento para alguém envolvido em assassinato assumir uma vaga na Polícia Civil?

SIM
» CIRO DE FREITAS

“Eu lamento muito a possibilidade de que ele possa ingressar nas fileiras da Polícia Civil do DF. A legislação o contempla, tanto que ele pode conseguir continuar no concurso por decisão judicial. No entanto, se ele, de fato, virar policial será muito observado e vigiado pelos colegas por conta do ato que ele praticou no passado. Isso é evidente. Será ruim para a corporação e para ele mesmo na condição de policial. Tem de ficar claro que o que ele fez, ainda que tenha sido quando adolescente, não foi uma coisa qualquer. Ele participou de um crime hediondo e isso ficou mais do que comprovado. Para virar policial civil, a pessoa precisaria ter um passado inteiro limpo, sem qualquer tipo de mácula ou nódoa, afinal, o cidadão não vai exercer uma atividade qualquer. Eu penso que a legislação tem que ser modificada quanto a isso. Mas a lei precisa mudar também em relação à maioridade penal, e que a pessoa possa, a partir de uma certa idade, ser penalizada na mesma proporção do ato praticado.”

Presidente do Sindicato dos Policiais Civis do DF (Sinpol)

NÃO
» LUIZ FLÁVIO GOMES

“Quando um menor de idade pratica um ato infracional e cumpre medida socioeducativa, não tem mais ficha, limpa ou suja. O adulto, dois anos depois de ter cumprido toda a pena, também consegue a ficha limpa. Eles são cidadãos, completamente regenerados, e têm que ser respeitados, sem discriminação em qualquer área. A investigação de vida pregressa e análise social para a entrada em concursos públicos são muito importantes, sim, desde que a análise não seja feita baseada em crimes que já foram pagos pelos infratores. Claro que não é qualquer pessoa que pode e deve assumir um cargo público. Isso está previsto nos editais. É preciso cumprir uma série de exigências, principalmente para funções como policial, juiz ou promotor. Mas a pessoa não pode ficar marcada por algo que fez há muitos anos e ser discriminada por isso.”

Luiz Flávio Gomes, jurista e especialista em direito penal

Fonte: Correio Web