O trabalho penoso e o adoecimento físico e/ou psíquico

Este trabalho reflete sobre o conceito de trabalho penoso, analisa os fatores psicossociais de risco como uma das possíveis causas da penosidade, e propõe condições para que esses riscos sejam detectados e transformados através de um meio ambiente de trabalho hígido.

Introdução  
É certo que a Constituição Federal brasileira (Brasil, 1988, p.23), em seu art. 7º (XXII e XXIII), garante aos trabalhadores, a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”, bem como o “adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei.”

Mas é certo também que esses riscos, longe de serem minimizados ou erradicados, estão gradualmente se agravando e, o que é pior, de forma silenciosa e oculta. Não nos apercebemos disso, mas as pessoas estão mais adoecidas, sobretudo, mentalmente.

A regulamentação do adicional de remuneração em face do labor em atividades penosas se faz urgente. Não obstante, sua erradicação do meio ambiente do trabalho se faz mais urgente ainda.

O presente estudo pretende refletir sobre a conceituação de trabalho penoso, bem como analisar os fatores psicossociais de risco como uma das possíveis causas da penosidade, além de propor condições para que esses riscos sejam detectados e transformados garantindo-se, dessa forma, um meio ambiente de trabalho hígido.

Atividades penosas

Relacionamentos interpessoais construídos sem o lastro da fraternidade, imposição de metas de difícil cumprimento e quase sempre inatingíveis, são fatores que menosprezam o Homem enquanto ser humano e o qualificam como coisa aproveitável e descartável, além de ferirem frontalmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, notadamente no que diz respeito ao disposto nos Artigos I e V que assim preceituam:

Artigo I
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

Artigo V
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante (ONU, 1948, p.34).

Mas foi a Convenção Americana dos Direitos Humanos, pactuada em San José da Costa Rica, no dia 22 de Novembro de 1969, ratificada pelo Brasil em 25 de Setembro de 1992, em específico nos seus artigos 4º, §1 e 5º, §1, que assegurou que o direito ao respeito à vida abrangerá seus aspectos físico, psíquico e moral, senão veja-se:

Artigo 4º – Direito à vida
1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente (p.80).

Artigo 5º – Direito à integridade pessoal
1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral (CONVENÇÃO…, 1969, p.81).

E é a própria Constituição Federal de 1988 que no art. 225, caput, assegura o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao preceituar que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (BRASIL, 1988, p.174).
Estabelece ainda no art. 200, inciso VIII que, “Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da Lei: colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho”.

Não obstante tal fato, Guedes denuncia que a gestão por estresse é o fenômeno mais recorrente do psicoterror no trabalho. Pois:

[…] esse modelo de gestão contém um elemento ideológico cruel – levar os trabalhadores a acreditarem que, produzindo à exausta, teriam seus empregos poupados e garantidos! O que não é verdade. Os frequentes cortes de pessoal têm duplo sentido, se por um lado, reafirmam a ideologia implícita na estratégia, por outro lado, a faz cumprir-se em sua totalidade. Acontece que essa estratégia, assentada na pressão psicológica para o cumprimento de metas cada vez mais rigorosas, aliada às jornadas exaustivas, sob a ameaça de despedida, revela a face perversa do poder das organizações, conhecida como administração por estresse, causa do profundo mal-estar daqueles que trabalham nessas condições (GUEDES, 2007, p.189 in SILVA et al., 2007).

Segundo Guedes (2007, p.189 in SILVA et al., 2007), importantes  estudos na área da Psicodinâmica do Trabalho demonstram que não há neutralidade do trabalho em relação às doenças mentais, pois o trabalho participa do processo de formação da identidade do ser humano; harmonia, equilíbrio e autoestima dependem do reconhecimento do esforço desempenhado. Pois, de acordo com “a OMS, SAÚDE é o completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de doença ou enfermidade”.

Em seus estudos, Seligmann-Silva (2007, p.69 in REZENDE et al., 2007) afirma que “no sofrimento mental relacionado ao trabalho e em suas expressões mórbidas, é  a subjetividade do indivíduo que é atingida”. De acordo com essa autora, quando o medo permeia as relações interpessoais abre-se espaço para a desconfiança que, por sua vez, contamina a sociabilidade fora e dentro dos ambientes de trabalho e produz como consequência o isolamento entre as pessoas. E conclui dizendo que é essa “desconfiança que está na raiz das manifestações paranoides que se alastram no mundo do trabalho e na sociedade”.

De acordo com Medina (1986, p.33 in BRASIL, 2001):

os transtornos mentais menores acometem cerca de 30% dos trabalhadores ocupados, e os transtornos mentais graves cerca de 5 a 10%. No Brasil, dados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) sobre a concessão de benefícios previdenciários de auxílio-doença por incapacidade para o trabalho superior a 15 dias e de aposentadoria por invalidez, por incapacidade definitiva para o trabalho, mostram que os transtornos mentais, com destaque para o alcoolismo crônico, ocupam o terceiro lugar entre as causas dessas ocorrências.

Mas em Brasil (2001) encontramos também a afirmativa de estudos para os quais:

[…] alguns metais pesados e solventes podem ter ação tóxica direta sobre o sistema nervoso, determinando distúrbios mentais e alterações do comportamento, que se manifestam por irritabilidade, nervosismo, inquietação, distúrbios da memória e da cognição, inicialmente pouco específicos e, por fim, com evolução crônica, muitas vezes irreversível e incapacitante (BRASIL, 2001, p.162).
 
De acordo com a Portaria/MS 1.339/1999, os transtornos mentais e do comportamento relacionados ao trabalho são:
Demência em outras doenças específicas classificadas em outros locais (F02.8), Delirium, não-sobreposto à demência, como descrita (F05.0), Transtorno cognitivo leve (F06.7), Transtorno orgânico de personalidade (F07.0), Transtorno mental orgânico ou sintomático não especificado (F09.-), Alcoolismo crônico (relacionado ao trabalho) (F10.2), Episódios depressivos (F32.-), Estado de estresse pós-traumático (F43.1), Neurastenia (inclui síndrome de fadiga) (F48.0), Outros transtornos neuróticos especificados (inclui neurose profissional) (F48.8), Transtorno do ciclo vigília-sono devido a fatores não-orgânicos (F51.2), Sensação de estar acabado (síndrome de burn-out – síndrome do esgotamento profissional) (Z73.0) (BRASIL, 1999, p.164).

É certo que as atividades insalubres e perigosas são claramente identificadas e previstas nos artigos 189 e 193 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), quando assim preceituam:

Art.189. Serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos (BRASIL, 1943, p.837).

Art. 193. São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem risco acentuado em virtude de exposição permanente do trabalhador a:

** Caput com redação determinada pela Lei n.12.740, de 8-12-2012.

I – Inflamáveis, explosivos ou energia elétrica;

** Inciso I acrescentado pela Lei n. 12.740, de 8-12-2012.  

II – Roubos ou outras espécies de violência física nas atividades profissionais de segurança pessoal ou patrimonial. (nova redação Lei n. 12.740, de 8.12.12).

** Inciso II acrescentado pela Lei n. 12.740, de 8-12-2012.  

§ 1º – O trabalho em condições de periculosidade assegura ao empregado um adicional de 30% (trinta por cento) sobre o salário sem os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa.

** §1.º com redação determinada pela Lei n.6.514, de 22-12-1977.
Vide art. 7º, XXIII, da CF.

§ 2º – O empregado poderá optar pelo adicional de insalubridade que porventura lhe seja devido.

** § 2.º com redação determinada pela Lei n. 6.514, de 22-12-1977.

§ 3º Serão descontados ou compensados do adicional outros da mesma natureza eventualmente já concedidos ao vigilante por meio de acordo coletivo.

** § 3.º acrescentado pela Lei n. 12.740, de 8-12-2012. (CLT, 2013, p.838)

Mas é certo também que as atividades penosas também constitucionalmente garantidas, nunca vieram à luz da legislação.

O que são atividades penosas? Poderíamos definir como penosas as atividades exercidas em condições cruéis, desumanas ou degradantes cujos fatores levam ao adoecimento físico e/ou psíquico do trabalhador?

Segundo Sacconi (2010, p.569), cruel é alguém “que se compraz em fazer mal, em atormentar ou prejudicar;” desumano é algo “ferino, bestial, desnaturado” e degradação “é a destituição ignominiosa de um grau, dignidade, encargo, qualidade”.

Por sua vez, Penido (2011) afirma que:

[…] ao analisar a violação do direito ao respeito à integridade pessoal, a Comissão Interamericana usou como subsídio as decisões da Comissão Europeia de Direitos Humanos, nas quais ficou estabelecido como sendo tratamento desumano aquele que deliberadamente causar sofrimento mental ou psicológico injustificado e de alguém ter recebido tratamento degradante quando for gravemente humilhado diante de outrem (PENIDO, 2011, p.224). (grifos da autora)

Vê-se, portanto que, se a Constituição Federal do Brasil garante como Princípios Fundamentais “a dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III) e “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (art. 1º, IV), e o tratamento cruel, desumano ou degradante destituem essa dignidade, é certo afirmar que “penosas são as atividades exercidas em condições cruéis, desumanas ou degradantes cujos fatores levam ao adoecimento físico e/ou psíquico do trabalhador”. (grifos da autora)

A esse respeito, Marques leciona que “O conceito de trabalho penoso é indicativo para se estabelecer se haverá ferimento à dignidade humana do trabalhador, bem como identificar se o meio ambiente de trabalho está inadequado e, ainda, verificar a existência permanente da atividade penosa, quando então serão estudados os limites, proibições e critérios remuneratórios” (MARQUES, 2007, p.61).

É dessa autora ainda o esclarecimento de que “A Câmara dos Deputados tem registros, desde 1973, de vários Projetos de Lei que tratam de algumas atividades profissionais como penosas. Foram elaborados mais de 60 Projetos de Lei, alguns com proposição inativa; outros, arquivados; outros, em trâmite” (MARQUES, 2007, p.62).

Ainda de acordo com Marques, o Projeto de Lei n. 1.015/88, do Deputado Federal Paulo Paim (PT-RS), assim definia o tema:

Serão consideradas atividades penosas aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exijam dos empregados esforço e condicionamentos físicos, concentração excessiva, atenção permanente, isolamento, imutabilidade da tarefa desempenhada em níveis acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do trabalho a que estão submetidos (MARQUES, 2007, p.62).

Não obstante tal fato e revelando um entendimento no sentido de que a questão da penosidade está intimamente ligada à saúde mental, o Projeto de Lei n. 7083/02, também de autoria do Deputado Federal Paulo Paim, conceitua as atividades de motoristas e cobradores de transportes coletivos urbanos como penosas, e passa a definir o tema na seguinte forma: “Atividades penosas são aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, expõem os empregados a condições de estresse e sofrimento físico e mental” (MARQUES, 2007, p.62).

Conceito esse reafirmado pela Deputada Federal Ângela Moraes Guadagnin (PT-SP), no Projeto de Lei Complementar n. 317/02, nos seguintes termos: “Atividades penosas são aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, expõem a condições de estresse e sofrimento físico e mental, nos termos estabelecidos no regulamento” (MARQUES, 2007, p.63).

É certo que o tema é amplo, profundo, extremamente subjetivo e, por isso mesmo, clama por estudos e reflexões.

Fatores psicossociais e riscos ambientais
Mas é certo também que a regulamentação do inciso XXIII do Art. 7º da Constituição Federal no que tange à definição de atividades penosas e a consequente regulamentação do adicional a ser pago, não será hábil o suficiente para coibir e erradicar as referidas condições do meio ambiente do trabalho.

A legislação em vigor e os estudos referidos permitem-nos concluir que enquanto a insalubridade e a periculosidade dizem respeito aos agentes físicos, químicos e biológicos nocivos aos trabalhadores, a penosidade, por sua vez, está vinculada também aos fatores psicossociais de risco.

Esses riscos, segundo Guimarães (2007, p.100 apud REZENDE et al., 2007) “podem interferir até mais do que fatores físicos no desempenho do trabalho”, pois são os menos estudados e quase nunca considerados como possíveis causas de doenças ocupacionais ou relacionadas com o trabalho, o que segundo a autora “não reduzem os seus efeitos deletérios”.
Em sendo assim, necessário será não só regulamentar o inciso XXIII do Art. 7º da Constituição Federal, mas também inserir “os fatores psicossociais” na categoria de “riscos ambientais” conforme item 9.1.5 da Norma Regulamentadora 9, do Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (BRASIL, 1978), dessa forma definido: “9.1.5 Para efeito desta NR, consideram-se riscos ambientais os agentes físicos, químicos e biológicos existentes nos ambientes de trabalho que, em função de sua natureza, concentração ou intensidade e tempo de exposição, são capazes de causar danos à saúde do trabalhador” (BRASIL, 1978, p.01).
Bem como inserir “profissionais especializados em saúde psicossocial do trabalho”, assim compreendidos, “Psicólogo, Psiquiatra, Ergonomista e Assistente Social” no rol dos profissionais previstos no item 4.4 da Norma Regulamentadora 4, dos Serviços  Especializados em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho (BRASIL, 1978), assim prescrito:

4.4 Os Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho deverão ser integrados por Médico do Trabalho, Engenheiro de Segurança do Trabalho, Técnico de Segurança do Trabalho, Enfermeiro do Trabalho e Auxiliar de Enfermagem do Trabalho, obedecido o Quadro II, anexo. [Alterado pela Portaria DSST n.º11, de 17 de setembro de 1990] (BRASIL, 1978, p.1250).

Segundo Rocha:
Os programas de prevenção muitas vezes buscam a saúde mental incluindo apenas ações baseadas nos indivíduos, sem analisar e intervir nos fatores das situações de trabalho, resultando em baixa eficiência destes programas. É fundamental a determinação de um conjunto de ações nas situações de trabalho e também para os indivíduos (ROCHA, 2007, p.131 apud REZENDE et al., 2007).

É certo, portanto, que as inserções propostas com certeza permitirão que os fatores psicossociais de risco, acaso existentes nos ambientes de trabalho, sejam detectados, analisados e transformados, concedendo assim aos empregadores e empregados uma melhor condição de vida e um meio ambiente do trabalho hígido e agradável.

Conclusão
A construção coletiva do saber é algo que desafia a mente e os tempos modernos. Se, há algum tempo atrás sentar, conversar e ajudar-se mutuamente era algo corriqueiro e normal, hoje não é mais assim.

O respeito ao indivíduo que, muitas vezes transmuda-se em individualismo, a corrida pelo saber e a ganância pelo ter, têm nos afastado a todos, cada vez mais. O egoísmo, a vaidade, a inveja, os ciúmes, a soberba e o orgulho são notas características dos tempos modernos.

Todos perdem. Porque é exatamente na partilha fraterna que se faz comunhão. De bens morais, espirituais, materiais e científicos. E a comunhão garante a paz, porque na partilha, ela multiplica os dons e enriquece a todos.

É preciso caminhar. É preciso repensar. É preciso iluminar. É preciso colaborar. Um mundo unido é possível. Mas ele depende de todos nós. Homens irmãos. Homens fraternos. A reflexão sobre os fatores psicossociais que possam ser nocivos ao trabalhador somente será possível através de uma construção coletiva do saber.

A interdisciplinaridade é o caminho.

Médicos, Enfermeiros, Engenheiros, Ergonomistas, Psicólogos, Psiquiatras, Técnicos de Segurança do Trabalho, Empregadores, Empregados, Juízes, Procuradores, Auditores, Advogados e Pensadores do Direito do Trabalho precisam parar, refletir, pensar, estudar e atuar sobre o meio ambiente de trabalho para que ele dignifique e plenifique o homem no seu saber maior, o próprio trabalho.

*Carla Maria Santos Carneiro é advogada trabalhista. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás, 1987. Especialização em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho, pela Faculdade Anhanguera de Ciências Humanas, 2001. Mestranda em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, 2014.