Intimidade versus criminalidade

*Placidina Pires e Mozart Brum

No processo penal são inadmissíveis provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI, da Constituição Federal), assim entendidas aquelas oriundas de tortura ou com infringência à intimidade da pessoa (art. 5º, III, X, XI, XII, da Constituição Federal), dentre outras.

Nessa esteira, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem entendido ser ilícita a prova oriunda do acesso, sem autorização judicial prévia, aos dados do celular e das conversas de whatsapp extraídas do aparelho celular da pessoa investigada. Tal entendimento está baseado no fato de que o acesso aos dados do aparelho constitui devassa de dados particulares, com violação à intimidade do agente criminoso.

Sem dúvida referido entendimento decorre de interpretação razoável das normas constitucionais, entretanto, não pode ser adotado de forma absoluta, sem um juízo de ponderação dos interesses jurídicos em conflito, quais sejam, direito à intimidade do infrator e direito coletivo à segurança pública, ambos direitos fundamentais. Nesse sentido, a Ministra Maria Tereza de Assim Moura no RHC 76.324/DFR, entendeu que, em caráter excepcional, quando houver fundamento que justifique a urgência do acesso imediato das autoridades policiais aos dados armazenados no aparelho celular, a prova não será considerada nula.

Indiscutivelmente, referido entendimento é o que melhor contempla os direitos e interesses em jogo, porquanto, de um lado, protege o cidadão dos abusos estatais, no caso, da devassa não autorizada dos seus dados pessoais, contidos no celular e em seus aplicativos, de outro, possibilita a investigação da prática de crimes, como expressão do direito coletivo à segurança pública, quando estiverem presentes os requisitos da imprescindibilidade e urgência da medida, uma vez que a segurança também constitui direito fundamental dos cidadãos, do qual decorre o poder-dever de punir do Estado.

O que não se apresenta razoável, sob a ótica do estado democrático de direito e da titularidade de direitos fundamentais, é a adoção de entendimento que preserva apenas os interesses dos infratores da lei, em desamparo ao direito da vítima de ver apurada a autoria do delito contra ela perpetrado, e em total desatenção aos direitos dos demais cidadãos, cada vez mais expostos aos reflexos da proteção, flagrantemente excessiva, de somente um dos sujeitos da relação jurídico-processual.

Evidente que decisões judiciais inclinadas à preservação/proteção, de modo absoluto, de direitos e garantias fundamentais de apenas de uma das partes, sem nenhuma ponderação de necessidade e urgência, de igual modo, desatende à ordem constitucional vigente, em medida mais significativa que o próprio acesso, não autorizado, aos dados do celular do investigado, por impor à sociedade uma proteção estatal deficiente, passível, inclusive, de reparação estatal.

Aliás, é bom que se diga que a previsão constitucional de preservação do sigilo das correspondências, dos dados e das comunicações telefônicas, salvo autorização judicial, foi idealizada e se encontra positivada na Carta Magna para a proteção dos cidadãos contra abusos e excessos estatais, tanto que não se trata de um direito absoluto, não se prestando para a ocultação de provas de crimes ou para o embaraço às investigações criminais, notadamente aquelas referentes à apuração de crimes graves, que impactam, de modo mais evidente, a sociedade.

Em outras palavras, a garantia constitucional visa coibir excessos praticados por agentes estatais, o que não ocorre na hipótese em que o infrator esquece o celular na cena de um crime de homicídio, latrocínio ou qualquer outro crime grave e violento, ou quando o aparelho é apreendido no interior de estabelecimentos prisionais, em cujos locais é vedada a entrada desses aparelhos, ou, ainda, quando o agente é preso em flagrante delito na posse do celular e o acesso aos seus dados naquele instante se revela indispensável para a investigação, ou ainda, quando aquele objeto é utilizado para a prática de crimes.

Tal providência, sem nenhuma dúvida se mostra justificada para que não haja perecimento da prova ou fuga do suspeito, especialmente considerando que a sociedade alimenta uma justa expectativa de apuração dos crimes praticados, não podendo ser frustrada em seus anseios mais comezinhos de justiça.

Nesses casos não encontra respaldo constitucional a decretação de nulidade da prova obtida – porque a preservação da intimidade do réu/investigado não merece maior proteção constitucional que outros direitos fundamentais do cidadão, mais relevantes, como a segurança pública, a vida, a integridade física, o patrimônio, a liberdade individual etc.

*Placidina Pires, juíza de Direito em Goiás, e Mozart Brum da Silva, promotor de Justiça também em Goiás.