É possível proteger receitas gastronômicas no Brasil?

Luiz Guilherme Valente

A final da 4ª temporada do programa Masterchef, exibido pela Band no dia 22 de agosto trouxe à tona uma velha discussão entre chefs de cozinha, agentes da indústria gastronômica e estudiosos da propriedade intelectual: afinal, pratos e receitas são protegidos pela nossa legislação?

A polêmica do reality show deu-se, em resumo, por a participante vencedora ter sido acusada de reproduzir, sem citar a autoria, uma sobremesa criada por uma renomada chef paulistana. Após a exibição do programa, a finalista usou as redes sociais para atribuir créditos à autora da receita que lhe rendeu o troféu de ganhadora da edição. Ainda assim, o fato reacendeu o debate quanto à possibilidade de garantir a chefs e restaurantes o direito de impedir que terceiros, sem sua autorização, refaçam e comercializem suas criações gastronômicas.

Há 3 anos, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes de São Paulo (ABRASEL) criou o Registro de Receitas, Produtos e Serviços da Área de Gastronomia (REGGA), um serviço para registro de receitas culinárias. Por mais que tenha sido comparado ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), o REGGA é uma entidade privada, de modo que o registro, por si só, não cria nenhuma espécie de proteção ao criador de determinado prato. Isso porque, no Brasil, não existe lei que preveja tutela específica para receitas culinárias. Dessa forma, para impedirem terceiros de usarem suas criações, é necessário que chefs e restaurantes recorram a um dos regimes da propriedade intelectual: os direitos autorais, as patentes de invenção e de modelo de utilidade, o registro de marca, ou a repressão à concorrência desleal.

A tutela por meio de direitos autorais parece ser a mais interessante, uma vez que, além de dispensarem a necessidade de registo, concedem tanto o direito de uso exclusivo vitalício e por mais 70 (setenta) anos após a morte do criador, como também direitos morais por tempo indefinido. Em outras palavras, mesmo após a morte do autor, terceiros ficam impedidos de reproduzir sua obra sem lhe atribuir crédito, ou utilizá-la de alguma forma que prejudique sua reputação. Em caso de descumprimento, o autor ou seus herdeiros podem exigir indenização de quem violar a exclusividade ou os direitos morais da obra.

Nossa Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998), porém, exclui de proteção “as ideias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos”, assim como “os esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou negócios”. Com base nesse último dispositivo, há decisões judiciais que rejeitam tutela de receitas gastronômicas por esse regime, por considerarem que receitas não seriam equiparáveis a “criações do espírito”. Em sentido contrário, há julgados que, apesar de negarem a proteção no caso concreto, autorizam em tese a aplicação dos direitos de autor a pratos que, por conta de sua originalidade, representem uma expressão da subjetividade do chef. Dessa forma, resta a dúvida quanto a se, de fato, as criações gastronômicas originais poderiam ser equiparadas às obras artísticas, estando assim tuteladas pelo regime autoral. Por exemplo, determinado empratamento criativo seria passível da mesma tutela aplicável às artes plásticas?

Uma alternativa ao regime autoral seria patentear as receitas como invenções ou modelos de utilidade, pleiteando, assim, um direito de uso exclusivo por prazos, respectivamente, de 20 (vinte) e 15 (quinze) anos. Nessa linha, diferentemente do Código anterior (Lei nº 5.772/1971, art. 9º, “c”) , nossa atual Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/1996) não proíbe a exclusividade sobre produtos alimentícios. Há decisões, todavia, que dizem ser impossível patentear as receitas analisadas no caso concreto, por não serem novas ou originais, sendo ligeira variação de prato mundialmente conhecida, além de não serem passíveis de aplicação industrial. No mesmo sentido, de forma análoga à Lei de Direitos Autorais, a Lei de Propriedade Industrial diz não serem invenções nem modelos de utilidade os esquemas, planos e a apresentação de informações, o que pode ser interpretado como uma vedação ao patenteamento de receitas.

Ainda sob a Lei de Propriedade Industrial, outra forma de proteção de pratos culinários seria o registro do nome ou da apresentação visual do prato como marca. Entretanto, tal regime, embora juridicamente possível, só seria aplicável a nomes e empratamentos originais – isto é, distintos daqueles que se costuma adotar para esse tipo de receita –, capazes de fazer o público consumidor identificar determinado cozinheiro ou estabelecimento. A vantagem dessa alternativa é que o registro das marcas, válido por períodos de 10 (dez) anos, pode ser renovado sucessivas vezes. Por outro lado, essa proteção recairia somente sobre o nome ou aspecto visual do prato, não abrangendo nem a receita em si, nem o sabor.

Outra alternativa possível é a tutela pela repressão à concorrência desleal. Esse regime, no Brasil, é extremamente amplo, não havendo uma definição precisa das condutas que abrange. Mesmo que não sejam reconhecidos direitos autorais e mesmo que não haja patente, pode-se alegar que eventuais concorrentes que reproduzam o mesmo prato estão se aproveitando dos investimentos incorridos por determinado chef ou restaurante para desenvolver aquela receita, desviando sua clientela.

Um caso clássico de concorrência desleal é a usurpação de uma receita por um concorrente ou funcionário, usando de meios escusos ou abusando da sua posição de confiança. Esse tipo de conduta é reprimido tanto nas esferas civil e penal. Nesse sentido, a forma mais segura de proteger suas criações é guardar o sigilo sobre as receitas, que passam então a ser tratadas, do ponto de vista jurídico, como segredo de comércio ou indústria.

Outra hipótese de concorrência desleal é o chamado trade dress: a cópia do conjunto da identidade visual de produto ou estabelecimento concorrente. Nesse contexto, existem decisões judiciais no Brasil que condenaram restaurantes e lanchonetes por reproduzirem uma série de elementos identificadores de um concorrente, incluindo o seu cardápio e o estilo de empratamento. Observe-se, no entanto, que a repressão ao trade dress não tutela um único aspecto (como uma receita individualmente), mas sim a sua “vestimenta”, ou seja, a aparência geral ou imagem global com que é apresentado ao mercado, incluindo características como tamanho, forma, textura e combinação de cores. De igual maneira, para que ocorra trade dress, é necessário que haja uma apropriação da soma dos traços distintivos, isto é, aqueles que, conjuntamente, os consumidores costumam associar a determinado produto ou estabelecimento.

A ausência de tratamento expresso às receitas gastronômicas na legislação de propriedade intelectual brasileira causa insegurança aos chefs e restaurantes que desejem impedir os concorrentes de se apropriarem de suas receitas. No mesmo sentido, não há regra clara nos tribunais quanto à aplicabilidade de um dos regimes de propriedade intelectual às criações culinárias. Assim sendo, somente uma análise detalhada de cada caso poderá apontar as melhores formas de mitigar os riscos de ter receita sou pratos reproduzidos indevidamente.

*Luiz Guilherme Valente é advogado sênior do escritório de advocacia Schroeder&Valverde, atua nas áreas de direito societário e propriedade intelectual.