Assédio moral na administração pública federal e do Estado de Goiás

Felipe Magalhães Bambirra

O assédio moral não é um problema novo. Contudo, numa sociedade marcada pela competitividade, individualismo e diversidade crescente, ele vem crescendo e gerando preocupações em profissionais das diversas áreas. É, ainda, um problema endêmico na Administração Pública brasileira, provavelmente em razão de, neste ambiente, existir a conjunção de elementos de poder e hierarquia, associados à necessidade de um complexo procedimento administrativo para apurar denúncias. Um ambiente de trabalho em que se tolera a prática de assédio moral torna-se tóxico, insalubre e adoecedor.

Segundo dados disponíveis[1], o assédio moral atinge, no Brasil, cerca de 36% da população trabalhadora. Para se ter ideia da gravidade que este número representa, a taxa em países europeus varia entre 16,3% (Reino Unido) a 7,3% (Alemanha). Estamos tratando, portanto, de uma verdadeira epidemia.

O assédio moral se caracteriza, em primeiro lugar, pela repetição de atitudes discriminatórias, humilhantes, que inferiorizam, menoscabam, expõem o servidor público a situações constrangedoras e degradantes, seja por meio de gestos, falas, atitudes ou mesmo documentos. Em regra, o assediador visa causar um mal estar psicológico no assediado, seja em razão de competição, inveja, para demonstrar poder ou simplesmente por apresentar problemas psicológicos de autorreconhecimento e alteridade, desenvolvendo uma personalidade perversa. Além da repetição – pois apenas um ato isolado poderia caracterizar falta funcional administrativa, e quiçá implicar em responsabilização cível e penal –, para caracterizar o assédio moral se exige, em segundo lugar, a intencionalidade da conduta. Isso significa que um ato capaz de ferir alguma sensibilidade, mas que não é cometido com o intuito de causar mal, não caracteriza o assédio. Porém, na prática, é muito difícil que haja condutas ou omissões repetidas de forma não intencional.

Ou seja, o assédio não é necessariamente cometido por superior hierárquico, admitindo-se como agente assediador colegas e mesmo subordinados, que abusam de suas prerrogativas, fazem “jogos psicológicos” para desgastar alguém, entre outras condutas que tem a finalidade de minar a autoimagem ou a imagem do servidor perante terceiros.

O servidor assediado, em razão desta conduta ilícita, tem a sua dignidade abalada, a saúde mental colocada em risco, e, em regra, acaba por apresentar transtornos, queda de produtividade, depressão, isolamento, dentre outros sintomas. Em suma, fere-se um grande grupo de direitos fundamentais, o que denota a relevância do tema.

Há, sem dúvida, suporte constitucional para se combater esta nefasta prática. Podemos citar, sem pretensão de exaurimento, a dignidade de pessoa humana e os “valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, ambos fundamentos da República (art. 1º, III e IV da CF/88), a vedação à submissão a tratamento degradante (art. 5º, III) e a proteção à privacidade, honra e imagem (art. 5º, X); no art. 7º, XXII, a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”; também o art. 200, VIII, impõe ao Sistema Único de Saúde “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho”.

No âmbito normativo infralegal, ainda não há a tipificação do assédio moral na Administração Pública Federal. Há diferentes projetos de lei tramitando no Congresso para modificar o Estatuto do Servidor Público Civil Federal (Lei Federal nº 8.112/90). Estas iniciativas são realmente relevantes, mas isto não significa dizer que, até a eventual aprovação de algum projeto de lei, o servidor público federal esteja desemparado, pois os ilícitos administrativos são redigidos de modo abrangente, podendo tal conduta se encaixar, a depender do caso, no art. 116, IX e XI da citada Lei, que, combinado com o art. 129 e 130, pode resultar em advertência e suspensão.

A depender da gravidade do assédio, poderá ter consequências mais graves. O art. 132, IV, da Lei Federal nº 8.112/90, determina a aplicação da pena de demissão, na hipótese de improbidade administrativa. Interpretando-o conjuntamente o art. 11, caput, da Lei de Improbidade Administrativa (Lei Federal nº 8.429/92), que considera ato de improbidade administrativa qualquer ação ou omissão que viole princípios retores da Administração Pública, tem-se severas consequências para casos de assédio.

Além disso, determinadas entidades da administração indireta federal possuem normas específicas sobre o assédio. É o caso exemplar da Universidade Federal de Goiás, que através de seu órgão superior de deliberação, o Conselho Universitário, aprovou a Resolução nº 12, de 19 de maio de 2017. No art. 2º e 3º, especificou o que considera assédio moral:

Art. 2º Considera-se assédio moral a prática abusiva, explícita ou velada, que se manifesta por meio de gestos, palavras e atos e que desrespeita, de forma sistemática e frequente, a integridade física e/ou psicológica de uma pessoa ou grupo, na relação entre membros da comunidade universitária, tais como: I- chefe e subordinado/a; II- professor/a e estudante; III- colegas de igual nível hierárquico; IV- um/a ou mais subordinados/as em relação à chefia; V- e outras relações.

Art. 3º São situações que caracterizam o assédio moral, entre outras: I- deteriorar de forma proposital as condições de trabalho ou estudo de uma pessoa ou grupo específico; II- desqualificar ou fazer críticas infundadas a alguém; III- isolar alguém do restante do grupo; IV- deixar de prestar informações necessárias à execução de alguma atividade; V- descumprir, ameaçar ou dificultar o usufruto de direitos, a exemplo de horários, férias, licenças, entre outros; VI- ofender, espalhar boatos, fazer críticas ou brincadeiras sobre a vida pessoal, particularidades físicas, emocionais e/ou sexuais de alguém.

Além disso, a Resolução determinou uma série de medidas preventivas, mecanismos para fazer cessar o assédio e, também, trouxe as penalidades para o caso de assédio – estas já previstas em lei.

No plano estadual, em razão da menor complexidade para aprovação de leis, já se vislumbram avanços significativos. O primeiro estado a legislar especificamente sobre o tema foi o Rio de Janeiro, com a Lei Estadual nº 3.921, de 23 de agosto de 2002. Também podemos verificar a existência de leis com escopo nos estados do Rio Grande do Sul, Mato Grosso, São Paulo, Minas Gerais e Goiás.

Em nosso estado de Goiás, foi aprovada a Lei Estadual nº 18.456, de 30 de abril de 2014. A Lei estadual veda a prática de assédio moral não apenas na Poder Executivo, mas abrange, inclusive, o Poder Judiciário, Legislativo, Ministério Público e Tribunais de Contas. De modo semelhante ao que já foi apresentado, os art. 2º e 3º explicitam o que se considera assédio moral, veja:

Art. 2° Considera-se assédio moral toda ação, gesto ou palavra, praticada de forma repetitiva por agente público que, abusando da autoridade que lhe conferem suas funções, tenha por objetivo ou efeito atingir a autoestima e a autodeterminação de outro agente público, com danos ao ambiente de trabalho, ao serviço prestado ao público, ou ao próprio usuário, bem como obstaculizar a evolução na carreira e a estabilidade funcional do agente público constrangido, especialmente: I – determinando o cumprimento de atribuições estranhas ou atividades incompatíveis com o cargo ou a função que ocupa, ou em condições e prazos inexequíveis; II – designando para o exercício de funções triviais o exercente de funções técnicas, especializadas, ou aquelas para as quais, de qualquer forma, exijam treinamento e conhecimento específicos.

Art. 3° Consideram-se também assédio moral, em especial, as ações, gestos e palavras que praticadas de maneira reiterada, impliquem: I – desprezo, ignorância ou humilhação ao agente público, que o isole de contatos com seus superiores hierárquicos e com outros agentes públicos, sujeitando-o a receber informações, atribuições, tarefas e outras atividades somente através de terceiros; II – privação de informações ou treinamentos que sejam necessários ao desempenho de suas funções ou úteis a sua vida funcional; III – divulgação de rumores e comentários maliciosos, ou o fomento de boatos inidôneos em detrimento da imagem do agente público, bem como a prática de críticas reiteradas ou subestimação de esforços, que atinjam a dignidade do agente público; IV – desrespeito da limitação individual de agente público, decorrente de doença física ou psíquica, atribuindo-lhe atividade incompatível com suas necessidades especiais; V – preterição do agente público, em quaisquer escolhas, em razão de deficiência física, raça, sexo, nacionalidade, cor, idade, religião, posição social, preferência ou orientação política, sexual ou filosófica; VI – valer-se do cargo para induzir o agente público a relações pessoais involuntárias ou persuadi-lo a praticar atos ilegais ou deixar de praticar ato determinado em lei; VII – relegar o agente público ao ostracismo; VIII – expor o agente público a efeitos físicos ou mentais adversos, em prejuízo de seu desenvolvimento pessoal e profissional.

A lei também se preocupou em deixar claro a punição ao assediador (art. 5º), no mesmo sentido do que já foi aqui tratado.

Mais importante que a punição, é a conscientização e prevenção. É existir mecanismos céleres e objetivos de apuração das faltas, bem como capazes de, provisória e definitivamente, retirarem o servidor assediado daquele local de trabalho, já durante o processo de apuração, existindo indícios de materialidade. Ao fazê-lo, resguarda-se  a saúde do servidor, evita-se que tal prática degrade o ambiente de trabalho e, também, evita-se que a Administração Pública possa ser responsabilizada civilmente por sua eventual omissão. Em suma, atende-se ao interesse público, macroprincípio do Direito Administrativo.

A todos envolvidos no processo – administradores, juízes, promotores – cabe exercitar a sensibilidade e compreender a situação da vítima. Não há, muitas vezes, razão para que o assédio ocorra, e, quando ela existe, é difícil prescrutá-la, correndo o risco de haver uma dupla vitimização durante o processo. Ao advogado, em especial, cumpre o mister de orientar a vítima de assédio, tanto no sentido de como constituir provas válidas – uma vez que os atos assediadores são, comumente, praticados às escusas, de forma clandestina – mas, igualmente, de perceber que a pessoa que se encontra nesta situação está vulnerável, não raro necessitando, também, de encaminhamento para acompanhamento psicológico. Assim, terá forças e conseguirá, além de tomar as medidas administrativas e jurídicas cabíveis, desenvolver estratégias para combater o assédio e contribuir para que se tenha um ambiente de trabalho agradável e, sobretudo, livre de assédio.

*Felipe Magalhães Bambirra é advogado associado ao Vellasco, Velasco & Simonini Advogados, com atuação especializada em Direito Público – Direito Administrativo, Ambiental e Municipal.  Pós-Doutor em Direito (UFG). Doutor e Mestre em Direito (UFMG). Foi pesquisador na Universidade de Colônia (Alemanha) e no Max-Planck-Institut für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht (Heidelberg – Alemanha). Professor de Direito Administrativo no UNIALFA – Centro Universitário Alves Faria (GO) e no mestrado em Direitos Humanos (Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos – UFG). OAB-GO 51.850. Contatos: e-mail: fmbambirra@vvs.adv.br; insta @fmbambirra; www.felipebambirra.com.br; www.vvs.adv.br.

https://www12.senado.leg.br/institucional/programas/pro-equidade/pdf/cartilha-de-assedio-moral-e-sexual