À meninada que quer ser juiz

Eduardo Perez Oliveira

Recentemente, segundo matéria repercutida na mídia, o ministro Sebastião Reis Junior, do STJ, proferiu uma frase em uma palestra que ecoou no meio jurídico: “Tenho dó dessa meninada que vai entrar no Judiciário pensando que vai julgar ‘Lava Jato’, que vai ser herói, que vai julgar senador”, e completa: “O que espera a meninada é uma montanha de processos que não deveriam estar no Judiciário e, na área criminal, Habeas Corpus. Milhares deles”.

Soube do discurso do ministro apenas pela referida matéria, portanto, não presenciei, mas, pelo teor, está prenhe de verdade: de fato, aportam ao Judiciário, e nele tramitam, muitas causas que não deveriam existir.

A matéria divulgada, ao citar o ministro, advogado nomeado pela então presidente Dilma Roussef para o Superior Tribunal de Justiça dentro das vagas destinadas a estes profissionais, enfatizou os exemplos dados de casos supostamente absurdos, como os de furto de sete bolas de árvore de natal, de botijão de gás ou de cremes no valor de R$ 12,00, assim como outros casos, denunciando atos desnecessários de todos os atores.

Contudo, ao lado dessas práticas estão outras, também nocivas, como os inúmeros habeas corpus e recursos movidos por réus de grandes esquemas de corrupção ou organizações criminosas, dos incidentes de suspeição do juiz após tentativas de provocação e ofensa e de outras condutas por vezes infundadas, muito bem assessorados por profissionais remunerados regiamente, estratégias as quais os réus mais pobres não possuem, feliz ou infelizmente, dependendo da visão de cada um.

Mas me atenho à frase que foi a chamada da matéria, da meninada que quer ser herói, e o faço como gancho, sem vínculo com a palestra do ministro, à qual não assisti, mas com o objetivo de narrar em parte o que é a realidade do juiz que muitos desconhecem.

É verdade que os futuros magistrados aprovados encontrarão pilhas de processos a serem julgados. Mais que isso, encontrarão também uma plêiade de atividades administrativas e burocráticas que não estão ligadas à função de julgar. Bacenjud, Renajud, Infojud, Infoseg, Serasajud, planilhas e mais planilhas a serem preenchidas mensalmente, respostas a serem dadas a ofícios que chegam diariamente, visitas a presídios e abrigos e mais uma série de outros deveres.

No meio de tudo isso, o magistrado deve organizar a pauta de audiências e também despachar, decidir e sentenciar processos, que é a atividade fim da Magistratura, cuja essência se perdeu em meio a tantos procedimentos administrativos, alguns supérfluos e redundantes.

Isso e muito mais essa meninada que entra na Magistratura pela estreita porta do concurso público irá encontrar. Se for para a Magistratura Estadual, pode esperar também ir para as cidades mais afastadas dos grandes centros. Recordo-me de um relato de um colega do Pará mencionando a distância cruzada em barco entre os distritos de sua comarca.

Ameaças também fazem parte do nosso dia-a-dia. Aliás, muito comum no primeiro grau. Se há, desconheço ameaças concretas proferidas contra ministros de tribunais superiores, até mesmo de desembargadores não é comum.

Isso porque, é bom que os neófitos saibam, é o juiz de primeiro grau que encara o réu face a face, que ouve a vítima, que conversa com as partes, que se integra à sociedade, sempre com cautela, para que não aleguem sua suspeição ou impedimento.

A sociedade sente de imediato as ações do juiz também chamado de “piso”, é o rosto dele que conhecem e é sua rotina que é todo dia examinada. Que o digam, para citar três nomes, os juízes Patrícia Acioli, Alexandre Martins e Alexandre Abrahão, todos vítimas de atentado em razão do exercício da magistratura.

Os dois primeiros morreram na mão de seus carrascos. O terceiro, a quem eu tenho a honra de chamar de amigo, sobreviveu e sua coragem só fez crescer, seja decidindo processos, seja proferindo suas brilhantes palestras. Mas eles não são os únicos, há centenas de juízes na mesma situação de risco.

Não bastasse, a Constituição Federal, a Lei Orgânica da Magistratura e, com habitualidade, o Conselho Nacional de Justiça impõem ao magistrado uma série de vedações, tanto no âmbito pessoal como profissional. Juiz não pode ter outra profissão, nem mesmo ser coaching, e está vedado de receber qualquer valor, salvo como cargo efetivo de professor. Da mesma forma, as obrigações do magistrado não se exaurem durante o expediente: deve manter uma postural moral o tempo inteiro.

Isso significa que até a vida particular do magistrado é regrada, não apenas pela sociedade que comenta tudo o que ele faz, como também pelas regras, que podem levar a sanções administrativas.

É por isso que essa meninada que entra não tem que achar que vai ser herói, tem que ter certeza disso. Só um herói é capaz de se preocupar com a sociedade e assumir uma carga pesada como a de ser juiz, com todos os riscos e privações, quando poderia muito bem ser aprovada em qualquer outro concurso que pague igual ou mais e não tenha esses difíceis encargos.

Talvez a distância com o primeiro grau, e por alguns sequer terem passado pela experiência que é se dedicar ao estudo para concurso, e, aprovado, ser encaminhado para uma distante comarca interiorana, os níveis mais elevados do Judiciário não tenham noção da importância que uma decisão numa ação de alimentos ou de saúde tem na vida do jurisdicionado, muito mais relevante, no âmbito individual, do que a Lava-Jato.

Para quem depende dessas decisões judiciais, a atuação do magistrado é um bálsamo. Só quem já viu, em audiência, uma senhora chorar de alegria por ter sido declarada inexistente uma mera dívida de R$ 40,00 sabe que a função do juiz vai além da burocracia e da doutrina cartesiana.

E isso acontece inclusive à noite, madrugada, finais de semana e feriados. Já trabalhei no dia 31 de dezembro, aos sons de fogos de artifício do ano que chegava, para deferir um pedido de medicamento previsto pelo SUS e que era negado pela municipalidade. Assim, muitos juízes trabalham numa escala 24/7, ou seja, sem descanso. Tudo isso, ao menos no nosso caso, sem compensação ou remuneração extraordinária pelo trabalho adicional.

São esses juízes espalhados por todas as regiões deste país que se esforçam para entregar justiça micro num Brasil onde ela falha no âmbito macro, tentando não esmorecer com os constantes ataques e mentiras desferidas contra o Judiciário e relevante parte da classe.

Falta de estrutura, insegurança, desestímulo pelo sucateamento da carreira, falta de reconhecimento, inclusive internamente pelos níveis mais superiores, ataques midiáticos, alto índice de doenças entre magistrados, perda gradual da força das decisões em virtude de atos praticados nas esferas mais altas do Judiciário… isso é só uma amostra do que espera a meninada que quer ser juíza, salvo se estiver prestando concurso apenas pelo status e pelo dinheiro, que, já adianto, não é isso tudo que dizem por aí, embora seja muito bom. Existem carreiras que podem pagar mais sem o mesmo peso, ou até mais fáceis, que paguem um pouco menos e permitam que o servidor tenha vida.

A continuar a desconstrução do Judiciário, muito provavelmente não serão mais os heróis que procurarão a carreira. E esse é o perigo.

*Eduardo Perez Oliveira é juiz de Direito em Goiás