A inversão de valores e conceitos, problema atual

Alexandre Augusto Martins

O País hoje tem presenciado uma série de acontecimentos que vem criando um clima de embate. Embate ideológico que é travado nas escolas, universidades, bate-papo entre amigos, redes sociais, na mídia, na imprensa, nos tribunais e órgãos de controle administrativo.

Esse tal embate ideológico tem, por vezes, criado um verdadeiro clima de “nós contra eles”, um acirramento sem precedentes, e que acaba contaminando ou influenciando decisões tomadas, a apreciação e análise isenta, e racional, e chegam mesmo a fazer letra morta os princípios e garantias fundamentais.

Neste mesmo rumo seguem um sem número de decisões judiciais ou administrativas que estão sendo proferidas e que se destinam a cominação de sanções de natureza diversa.

Infelizmente, o bom senso, a parcimônia, o respeito aos preceitos, princípios e limites constitucionais não tem sido uma constante, e primado da inocência deu lugar à regra da culpa.

Importante fazer esse introito para adentrar ao tema de fundo a que me proponho.

Na qualidade de operador do direito me vi satisfeito com o teor do projeto de lei nº 7.448/2017, que no Senado recebeu o nº 349.

O citado projeto de lei, de autoria do Senador Antônio Anastasia, inclui dispositivos no Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

As referidas disposições tratam da segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público, primados tão esquecidos ultimamente.

A referida proposta legislativa, que se encontra aguardando sanção ou veto por parte da Chefia do Poder Executivo Federal, é um marco e apesar de trazer disposições interessantíssimas sob o aspecto da segurança jurídica, motivação dos atos administrativos, obrigatoriedade de que as decisões judiciais possuam fundamento, razoabilidade e em especial da legalidade, tem sofrido duras críticas por parte de operadores do direito com atuações nas mais distintas áreas.

Pois bem, não consegui enxergar na referida proposta legislativa disposições ou regramentos que prejudiquem ou impulsionem a impunidade, pelo contrário, há sim um estímulo e a garantia de que a pena ou sanção aplicada seja efetivamente eficiente, posto ter observado todos os princípios e garantias fundamentais.

Hei por bem transcrever alguns dos dispositivos trazidos pelo supramencionado projeto de lei, e demonstrar que inexiste motivo ou fundamento para tamanhas e tão agressivas críticas.

O nóvel artigo 20 é assim vertido:

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.

Excelente conteúdo, posto que afasta a tão criticada sanção ou apenamento fundado na hermenêutica. Exige-se fundamentos claros, numa clara tentativa de se garantir o efetivo exercício da ampla defesa e do contraditório.

Por vezes os fundamentos adotados nas decisões administrativas ou judiciais, pareceres ou manifestações utilizados como razões de decidir não se fazem claros e concretos de forma a proporcionar que o acusado, investigado ou apenado possa exercitar seu direito de defesa, contrapondo-se argumento a argumento.

Prosseguindo, o ato administrativo traz e corporifica o exercício dos poderes e atribuições dos órgãos públicos, e, por via de consequência, criam, extinguem ou alteram direitos. Influenciam sim na vida dos administrados, e, desta feita, a demonstração quanto à adequação, necessidade, e a viabilidade da medida adotada deve ser levada em conta na motivação, isso no exercício do princípio da razoabilidade.

Por vezes nos deparamos com a figuração da modulação dos efeitos da decisão, decisão esta que as vezes reconhece o vício mais gravoso que pode assolar um ato administrativo, qual seja, o da inconstitucionalidade.

Mesmo ante o reconhecimento da inconstitucionalidade que assola um ato, por vezes, cumpre aquele que prolata tal decisório verificar a extensão dos efeitos do ato envidado, sob pena da motivação se mostrar tacanha e indevida. Cuida-se do ditado e da velha máxima no sentido de que as vezes a dose do remédio ou profilaxia se perfaz mais prejudicial do que a própria doença.

Trata-se até mesmo da observância do primado pars nullite sans grief, aplicado a vários ramos do direito, e que denota só existir nulidade se houver prejuízo. Assim, a revogação de um ato administrativo deve levar em conta todos os seus efeitos, e a necessidade da prática de tal ato, face às consequências advindas de tal conduta.

O disposto no artigo 21 completa o consignado no artigo 20, de forma que os argumentos podem ser reiterados.

Merece ainda análise e comentário o disposto no novo artigo 22, que é assim vertido:

Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

  • 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.
  • 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.
  • 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.

Alguns primados vêm sendo colocados em desuso na seara jurídica, dentre os quais havemos de lembrar que o direito e a norma devem levar em conta e se pautar pelo fato social.

O dispositivo acima transcrito confere ao gestor a prerrogativa de efetivamente exercer a gestão, ou seja, aferir, caso a caso, as soluções que cada situação requer, sempre pautado no direito, nas normas, na doutrina ou na jurisprudência, mas levando em conta no exercício das normas e regras os fatos sociais.

De outro modo, realizar a avaliação das circunstâncias visando a dosimetria de eventual sanção constitui regra basilar do direito sancionador, e tem por escopo adequar a pena ao dano causado.

O próprio STJ firmou posicionamento quanto a necessidade de utilizar-se do instituto da dosimetria da pena ou sanção aplicada, impedindo que se aplique por atacado as reprimendas previstas ou cominadas na norma de regência.

O artigo 23 trata da figura da transição, ora, nada mais e nada menos, leva em conta o princípio da razoabilidade, a figura da ausência de surpresa, a preservação da boa-fé da administração pública, não se necessitando maiores comentários sobre o mesmo.

O artigo 24 e suas disposições completam a regra contida no supramencionado artigo 23.

O artigo 25 prescreve que “Quando necessário por razões de segurança jurídica de interesse geral, o ente poderá propor ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, cuja sentença fará coisa julgada com eficácia erga omnes”.

Inicialmente há de se ressaltar que o referido dispositivo decorre da garantia da inafastabilidade de acesso ao Poder Judiciário, além de reiterar e repetir a característica da veracidade que é inerente ao ato administrativo.

O ato administrativo ainda possui a natureza e a característica de autoexecutoriedade, segundo a qual os atos administrativos podem ser executados pela própria Administração Pública diretamente, independentemente de autorização dos outros poderes.

Ora, se um órgão de controle questiona a veracidade, a autoexecutoriedade de um ato administrativo, que denota a vontade da administração pública, nada mais justo, e nem precisaria estar consignado em norma, a possibilidade da busca do Poder Judiciário com vistas a resolver a contenda.

Mais, quando se trata como ente, denota-se que trata do ente federado, pessoa jurídica de direito público, além dos órgãos aos quais se garante a personalidade judiciária.

O artigo 26 cuida da possibilidade de composição, celebração de compromisso, ou seja, mitigação dos efeitos por ventura considerados não esperados, inexistindo motivo ou fundamento para que se questiona, ainda mais em tempo de institutos como colaboração premiada e acordo de leniência.

O artigo 27 vem para complementar as disposições contidas no supramencionado artigo 26, dispensando maior aprofundamento.

Outrossim, no que se refere ao artigo 28, cujo caput preleciona que “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Essa disposição vem ao encontro do que já disciplina o artigo 80 do Decreto-lei nº 200/67, o qual “Dispõe sobre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências”, que é assim vertido:

Art. 80. Os órgãos de contabilidade inscreverão como responsável todo o ordenador da despesa, o qual só poderá ser exonerado de sua responsabilidade após julgadas regulares suas contas pelo Tribunal de Contas.

  • 1° Ordenador de despesas é toda e qualquer autoridade de cujos atos resultarem emissão de empenho, autorização de pagamento, suprimento ou dispêndio de recursos da União ou pela qual esta responda.
  • 2º O ordenador de despesa, salvo conivência, não é responsável por prejuízos causados à Fazenda Nacional decorrentes de atos praticados por agente subordinado que exorbitar das ordens recebidas.
  • 3º As despesas feitas por meio de suprimentos, desde que não impugnadas pelo ordenador, serão escrituradas e incluídas na sua tomada de contas, na forma prescrita; quando impugnadas, deverá o ordenador determinar imediatas providências administrativas para a apuração das responsabilidades e imposição das penalidades cabíveis, sem prejuízo do julgamento da regularidade das contas pelo Tribunal de Contas.

No mesmo sentido segue o posicionamento do Colendo STJ:

(…) Em se tratando de improbidade administrativa, é firme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que “a improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10” (STJ, AIA 30/AM, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, CORTE ESPECIAL, DJe de 28/09/2011). Em igual sentido: STJ, REsp 1.420.979/CE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 10/10/2014; REsp 1.273.583/SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe de 02/09/2014; AgRg no AREsp 56.655/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 31/03/2014

Ainda seguindo o posicionamento do STJ:

(…)3. O entendimento do STJ é de que, para que seja reconhecida a tipificação da conduta do réu como incurso nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa, é indispensável demonstrar o elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os tipos previstos nos artigos 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do artigo 10. 4. É pacífico no STJ que o ato de improbidade administrativa previsto no art. 11 da Lei 8.429/1992 exige demonstração de dolo, o qual, contudo, não precisa ser específico, sendo suficiente o dolo genérico. 5. Assim, para a correta fundamentação da condenação por improbidade administrativa, é imprescindível, além da subsunção do fato à norma, caracterizar a presença do elemento subjetivo. A razão para tanto é que a Lei de Improbidade Administrativa não visa punir o inábil, mas sim o desonesto, o corrupto, aquele desprovido de lealdade e boa-fé. (…)” (REsp 1662580/GO, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/05/2017, DJe 10/05/2017)

Desta feita, as disposições contidas no caput do artigo 28 nada mais e nada menos ressoam o posicionamento da jurisprudência, bem com regra constante de ato normativo hoje em vigor.

De mais a mais, e diante do que fora aqui lançado, consignado e comentado, não vejo motivos para que se crie tamanha celeuma diante da proposta legislativa que se encontra submetida ao crivo e análise presidencial, havendo de se ressaltar que a pena ou sanção aplicada ao arrepio da lei enseja o triunfo da injustiça.

*Alexandre Augusto Martins é advogado e presidente da Comissão do Advogado Publicista da OAB-GO