A importância da Governança Familiar

É inegável que toda empresa ou grupo empresarial familiar possui um conjunto de regras não escritas, forjado pela formação, pelas diversas situações e interações ocorridas no decorrer da sua história. Essas regras não escritas são compostas de valores, costumes, cultura e missão, os quais são repassados boca a boca ou através de exemplos de comportamentos ou atitudes tomadas diante de cada desafio enfrentado. No entanto, é interessante notar que a maneira como cada indivíduo percebe e entende essas regras acaba dependendo de vários fatores impossíveis de se prever ou controlar. Tudo depende de interpretação e da maneira como cada geração acolhe e se apropria dos valores e regras existentes na organização. Isso sem falar nas constantes mudanças que ocorrem no mundo dos negócios, especialmente no ambiente externo. Certa vez, atendi uma família onde o patriarca tinha o costume de fazer tudo sem o menor respeito às leis fiscais, essas vendas sem nota eram registradas à mão em um caderno que ficava na mesa dele. Os filhos, no entanto, estavam preocupados em mudar essa cultura, tendo em vista que o ambiente externo, no caso os controles da fiscalização fazendária, estavam mais rígidos e havia uma possibilidade real de a empresa sofrer uma auditoria arrasadora para o futuro dos negócios. Esse é um caso típico de mudanças exógenas que influenciam mudanças endógenas na maneira de se conduzir os empreendimentos da família.

Diante do desafio de se passar para as novas gerações todos os valores, princípios e regras inerentes ao DNA empreendedor do grupo familiar e levando-se em consideração as enormes mudanças ocorridas nos últimos anos no ambiente de negócios, muitas famílias empresárias têm entendido a importância de se sistematizar essa cultura, por meio de um documento, com o nome de “protocolo familiar”, onde se pode garantir uma melhor governança familiar e promover a unidade e maior entendimento de todos os envolvidos direta ou indiretamente com os negócios. Isso também garante a conservação dos princípios e valores morais que os fundadores pretendem que permaneçam enquanto a empresa existir, mesmo depois de sua aposentadoria, afastamento ou morte.

Um protocolo familiar pode ter um conteúdo bastante amplo, desde o estabelecimento de regras de como devem ser tratados e recebidos no âmbito da empresa os agregados, como genros e noras, regras relativas a como serão tratados membros da família com problemas de saúde ou que estejam em dificuldades financeiras, pode haver recomendação para que familiares não sejam fiadores de terceiros e até mesmo sobre o regime de casamento, determinando-se que se adote o regime de separação total de bens ou o estabelecimento de um modelo de pacto antenupcial, enfim, o conteúdo desse protocolo pode abranger muitos assuntos, estabelecendo-se inclusive quais seriam as consequências para o caso de descumprimento dessas regras. É muito importante constar deste documento, também, uma norma impeditiva do uso de recursos da empresa para interesses particulares, desde que ainda não distribuídos. Com essa regra se impede a famosa confusão patrimonial que costuma causar muito estrago no planejamento financeiro da empresa. Um outro cliente tinha uma indústria que, embora tivesse um excelente faturamento e boa margem de lucro, estava à beira da falência, quando buscamos entender os motivos, um dos principais era que as contas pessoais dos sócios, como prestações de aquisição de casas, carros, cartões de crédito, escolas e tudo o mais eram pagas diretamente pelo caixa da empresa. Sem a percepção de limites para os gastos, os sócios tendiam a manter um padrão de vida muito elevado e isso acabou devorando o capital de giro da empresa, levando a um alto endividamento com bancos e agiotas, o que provocou uma enorme crise financeira, com o consequente esvaziamento da capacidade de investimentos necessários à sobrevivência do negócio. Se houvesse um protocolo familiar proibindo essas práticas, com certeza todos estariam vivendo uma boa vida, sem com isso destruir a galinha dos ovos de ouro.

É de extrema importância que todos os familiares participem da formatação desse protocolo e o assine, tendo em vista que um documento vindo de cima para baixo ou imposto por um pequeno grupo de iluminados, dificilmente tem o condão de gerar nos demais familiares um compromisso efetivo com o seu conteúdo. Se possível deve-se até tirar uma foto com todos os familiares e o documento assinado, para que todos possam ser lembrados do que foi combinado entre as partes. Até porque as possíveis punições pelo descumprimento dessas normas não têm um condão punitivo e de aplicação de multas, mas são de cunho moral. As principais características de um protocolo familiar são: i) um caráter doutrinário ou dogmático; ii) caráter educativo; iii) estabelecimento e fortalecimento dos vínculos familiares.

A governança familiar consiste também na criação de um Conselho de Família, que deve se reunir periodicamente e que pode determinar a criação de comitês, formados por membros da família, especializados no desenvolvimento de determinadas tarefas. Sendo sugerido também pelos profissionais da área, a criação de um Family Office para auxiliar no gerenciamento da vida dos integrantes da família e cuidar dos seus ativos pessoais. Essa estrutura pode ser bastante simples e visa cumprir tarefas como o pagamento de contas, organização de viagens, aconselhamento e gestão de investimentos, gerenciamento dos ativos patrimoniais, dentre outras. O Family Office precisa ter regras bem claras e limites para o seu funcionamento e uso por parte dos familiares.

O estabelecimento da governança familiar tem como objetivo principal organizar a interação entre os familiares, entre estes e a empresa e também com o patrimônio acumulado, fixando limites e proporcionando um melhor conhecimento dos negócios. Sendo responsável também pela manutenção e melhor entendimento a respeito das tradições que se busca preservar. Outra utilidade é a formação de acionistas mais leais aos valores e à missão da empresa ou grupo empresarial e capazes de separar os problemas familiares, das questões relacionadas aos negócios.

*Giuliano F. Miotto, advogado, empresário e presidente do Instituto Liberdade e Justiça