A aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial no Tribunal de Justiça de Goiás

leandro-marmoNo final do século XVIII, surgiu na Inglaterra os primeiros julgados aplicando a atualmente denominada teoria do adimplemento substancial – substancial performance, a qual, passados alguns séculos tem sido adotada e aprimorada em nosso ordenamento jurídico.

Tal teoria surgiu da percepção de que em uma relação contratual, o direito da parte adimplente exigir o desfazimento do contrato, diante do inadimplemento da contraparte, não é absoluto, nem sempre é justo e equânime. Se já houver ocorrido a satisfação substancial da obrigação pelo devedor, o ideal é preservar o contrato e reconhecer apenas o direito do credor de ser indenizado pelas perdas e danos decorrentes do inadimplemento da parte mínima do contrato.

A existência de um direito absoluto à resolução do contrato por parte do credor parece evidente de uma análise fria e restrita apenas o que diz o art. 474 do CC “A cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito” e o art. 475 do CC “A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento”. Ocorre que os referidos textos da lei, não possuem aplicabilidade isolada, encontrando limitação nos princípios da boa-fé objetiva – art. 422 do CC, da função social dos contratos – art. 421 do CC, da vedação ao abuso de direito – art. 187 do CC e, ao enriquecimento sem causa – art. 884 do CC, o que permitiu o acolhimento no ordenamento jurídico brasileiro da teoria do adimplemento substancial.

No âmbito do Tribunal de Justiça de Goiás o primeiro precedente que identificamos data do ano de 2004, no julgamento da Apelação Cível de Relatoria do falecido Des. Vitor Barbosa Lenza, o qual inobstante não tenha se referido expressamente ao teoria, entendeu que a seguradora não poderia requerer a extinção imediata da contrato de seguro, diante do inadimplemento de apenas uma parcela, e assim se eximir de pagar o seguro, eis que a “segurada cumpriu substancialmente com a sua obrigação, não sendo a sua falta suficiente para extinguir o contrato; a resolução do contrato deve ser requerida em juízo, quando será possível avaliar a importância do inadimplemento, suficiente para a extinção do negócio”.

Em 2006 no julgamento da Apelação Cível n° 102576-9/188 o Des. Stenka I. Neto, decidiu que em um contrato de empreitada seria inexigível a multa penal contratual, diante de pequeno atraso que houve na entrega da obra pelo empreiteiro, o qual, no prazo final de entrega já havia concluído parte substancial da obra.

A referência pelo julgador a teoria do adimplemento substancial neste caso foi equivocada, eis que tal instituto somente se aplicaria se o contratante da empreitada houvesse requerido a resolução de todo o contrato, diante do atraso na entrega da obra e, se essa ainda não houvesse sido concluída. A declaração de inexigibilidade da multa contratual neste caso, não possui qualquer correlação com a teoria do adimplemento substancial.

No ano de 2008, o Des. Walter Carlos Lemes relator da Apelação Cível n° 120433-0/188, negou o direito de uma incorporadora de obter a resolução do contrato de compra e venda de um imóvel, posto que o comprador já havia “quitado a maior parte do contrato”, reconhecendo assim a aplicabilidade da teoria do adimplemento substancial ao caso.

Ainda no ano de 2008, o Des. Luiz Eduardo de Sousa relator da Apelação Cível n° 123823-0/188, negou a aplicabilidade da teoria do adimplemento substancial em um caso que “o devedor não honrou nem com a metade das prestações a que se obrigou”, e no julgamento da Apelação Cível n° 125983-9/188 decidiu que o Bradesco Vida e Previdência não poderia alegar a extinção do contrato e negar o pagamento do benefício previdenciário privado “se o participante vinha pagando regularmente as prestações dos contratos firmados” e houve “o atraso de apenas uma parcela, antes da ocorrência do óbito”, o que resultaria na “aplicação da teoria da adimplência substancial do contrato”.

Surgiu no final do ano de 2008 o primeiro julgado no TJ-GO sobre a aplicabilidade da teoria do adimplemento substancial com relação aos contratos de financiamento de veículos, vedando a busca e apreensão pela instituição financeira, quando já efetuado o pagamento da maior parte das parcelas.

Quando o consumidor deixa de pagar as parcelas do financiamento do veículo, a instituição financeira ajuíza ação visando a busca e apreensão do veículo, para vende-lo em leilão extrajudicial e assim satisfazer seu crédito. No julgamento do recurso de Agravo de Instrumento n° 59275-9/180, de relatoria da Desa. Beatriz Figueiredo Franco, foi decidido que “o cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da segunda prestação de trinta e seis e pagamento normal das demais, com deposito judicial daquela, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante”, eis que “o adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura da ação para a extinção do contrato”.

O entendimento acima, relativo ao inadimplemento de parcelas do financiamento de veículos, foi seguido pelo Des. Carlos Escher no julgamento do Agravo de Instrumento de n° 80207-9/180 proferido em 17.12.2009, quando já havia sido pago 41 das 48 prestações devidas. E ainda hoje a teoria do adimplemento substancial tem sido aplicada pelo TJGO em casos como estes, como se vê no julgamento do Agravo de Instrumento de n° 160555-09.2016.8.09.0000 realizado no dia 03.10.16, no qual foi negado o direito a busca e apreensão, tendo em vista que já foi pago 87% das prestações.

Questão polêmica, que nos chama a atenção, concerne aos parâmetros utilizados pelos Desembargadores do TJGO para aplicação da teoria do adimplemento substancial, diante da inexistência de uma lei, ou parâmetro unânime pela doutrina e jurisprudência definindo exatamente qual a porcentagem mínima que o devedor deverá ter cumprido de sua obrigação.

No julgamento da Apelação Cível n° 209943-05.2007.8.09.0093 o TJGO entendeu que o pagamento de apenas 54% do valor total das prestações, não era suficiente para configurar o adimplemento substancial.

No julgamento realizado no dia 15/08/2012 da AC interposta nos autos de n° 228566- 39.2005.8.09.0174, o Rel. Des. Amaral Wilson de Oliveira, entendeu que o pagamento de apenas 60% do valor das parcelas de um lote, já seria o suficiente para configurar o adimplemento substancial, já no julgamento do AI nº 152739- 78.2013.8.09.0000 o Rel. Des. Carlos Escher, entendeu que o pagamento de 75% do valor das parcelas de um lote, seria o suficiente para configurar o adimplemento substancial. Em recente julgado (A.I. – 206441-31.2016.8.09.0000) no dia 8 de setembro de 2.016 o TJ-GO, em um caso que o consumidor já havia pago 85% das parcelas, considerou que não poderia ser realizada a resolução do contrato.  Por fim, no julgamento da AC nº 45998-65.2007.8.09.0051 o Rel. Dr. Marcus da Costa Ferreira, entendeu que o pagamento de 91% do valor das parcelas de um financiamento imobiliário, seria o suficiente para configurar o adimplemento substancial.

Pelo exposto, conquanto não se possa negar a existência de inadimplemento de uma parte no contrato, restando em aberto, apenas valor mínimo (esse conceito é muito subjetivo e relativo, e leva em consideração inúmeras outras variáveis a depender de cada caso) se comparado ao montante total do contrato, é de se reputar abusiva e desproporcional à pretensão resolutória do credor, tendo em vista que a manutenção do contrato é a saída que se mostra mais justa e equânime, bem como mais adequada os princípios norteadores do nosso ordenamento jurídico.

O credor, por outro lado, em regra, poderá exigir a satisfação do saldo remanescente de sua prestação, bem como a indenização por perdas e danos, não lhe sendo causado assim, em tese, nenhum prejuízo.

Entendemos que a aplicabilidade da teoria do adimplemento substancial pelo TJGO amadureceu e evoluiu substancialmente desde que surgiu, no decorrer dos últimos anos, todavia ainda existe muito a ser aprimorado, exigindo-se ao meu ver, um esforço muito maior por parte dos colegas advogados, os quais devem procurar ter um maior conhecimento e domínio da teoria, para requerer com maior frequência a sua aplicação, a todos os casos em que é comportável, bem como, saberem contra argumentarem de forma fundamentada as hipóteses de não aplicação, contribuindo assim uma melhora qualitativa na prestação jurisdicional.

Encerro aqui o presente ensaio, com a pretensão simplória e superficial, de simultaneamente apresentar a teoria e ilustrar como a mesma tem sido aplicada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, aos colegas que ainda hoje a desconheciam.

*Leandro Marmo é advogado