Advogada fala sobre a persistência da cultura de trabalho escravo no Brasil

De 1995 a 2016, mais de 50 mil pessoas foram libertadas do trabalho análogo ao de escravo no Brasil, um crime que fere a dignidade e a liberdade humana. Porém, o sistema brasileiro de combate à escravidão contemporânea está ameaçado de sofrer retrocessos. O investimento contra o trabalho escravo não é suficiente para combater essa prática e as operações para resgate de trabalhadores têm diminuído. A advogada Carla Carneira, doutorando em Psicodinâmica do Trabalha, fala sobre a persistência da cultura escravocrata nas relações de trabalho no Brasil.

A advogada Carla Carneiro, doutoranda em Psicologia, com ênfase em Psicodinâmica do Trabalho.

As estatísticas demonstram que a relação de trabalho no Brasil é marcada por extrema desigualdade, comprovada pelos baixos salários e escolaridade, pela assimetria de direitos negociados em diferentes categorias, pela grande diferenciação de renda e, sobretudo, pela continuada cultura de exploração herdada do período escravocrata. Essa herança é difícil de ser combatida?
Sim. Se fizermos uma análise acurada perceberemos que da época do “descobrimento” do Brasil até a Lei Áurea são 388 anos de escravatura legitimada. A partir de então temos somente 129 anos de ausência de regulamentação para a escravidão.

A primeira legislação trabalhista data de 1891 e regulamentou o trabalho de menores em fábricas na cidade do Rio de Janeiro (Capital Federal do Brasil) e a própria Consolidação das Leis do Trabalho só veio a lume no ano de 1943, qual seja, 55 anos após a Lei Áurea, tendo tão somente 74 anos.

Temos somente uma geração de regulamentação do trabalho verdadeiramente livre. É muito pouco. A nossa memória e a nossa formação sempre nos remeterá para a escravidão. Ela ainda está viva em nós. Está no nosso sangue, no nosso DNA. Percebe-se isso pelo próprio discurso do senso comum, onde tem-se por inadmissível a postura de trabalhadores que buscam a Justiça do Trabalho para receberem seus direitos. É como se estivessem fazendo algo errado. Devem ser veementemente punidos por isso. E na maioria das vezes, assim o são, principalmente quando não são admitidos em outro emprego porque quando o empregador anterior é consultado não o recomenda por ter reclamado seus direitos na Justiça do Trabalho.

De acordo com a legislação brasileira, quais são as situações que podem caracterizar o trabalho escravo?
Segundo o Artigo 149 do Código Penal o trabalho escravo é caracterizado por submissão a trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho e/ou restrição da locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.  Incorre nas mesmas penas quem cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador a fim de retê-lo no local de trabalho, mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador a fim de retê-lo no local de trabalho.

O abismo entre a jornada prevista na lei e a jornada efetiva persiste?
Sim. Sabe-se que a jornada normal/legal é de 08h/dia e 44h/semanais ou de 6h/dia e 36h/semanais para o labor em turnos ininterruptos de revezamento. Mas não raras vezes são muitos os trabalhadores que trabalham em turnos ininterruptos de revezamento e por força de uma Convenção Coletiva de Trabalho, não recebem as horas extras excedentes às 6ªs e o que é pior, muitas vezes trabalham até 12h00/dia, vez que a ausência do colega de trabalho do turno subsequente acarreta a dobra de turnos em condições precárias e totalmente prejudiciais, posto que o trabalhador já está tomado pela fadiga.

Sabe-se ainda que a jornada 12hx 36h é altamente desaconselhável, vez que os baixos salários obrigam o trabalhador a laborar em até 03 empregos para ganhar o seu sustento e isso faz com que ele nunca usufrua do descanso necessário. Assim é comum, sobretudo em Goiânia, encontrar trabalhadores que são porteiros diurnos em um prédio e noturnos em outro, justamente no horário em que deveriam estar descansando. Fato esse comum também para os trabalhadores da área de saúde.

Outra categoria extremamente penalizada são os motoristas. Uma ação movida pelo Ministério Público do Trabalho em Campinas (SP) alcançou a condenação de um grupo de logística em indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 15 milhões por manter motoristas de caminhão em jornadas de trabalho extenuantes, até 34 horas diárias de labor, configurando o labor em condição análoga a de escravo.

Somos 40 milhões de trabalhadores com baixa renda e baixa escolaridade. Isso significa que os escravizados de antes passaram a ter em comum hoje a pobreza extrema e o estado de necessidade contínuo?
Sim. Era comum ouvirmos que alguns fazendeiros eram tão bons para os seus escravos, que esses, apesar de libertos, nunca quiseram deixar as respectivas fazendas. Essa afirmativa sempre me intrigou e agora tenho conhecimento da razão pela qual esses trabalhadores permaneceram nas respectivas fazendas: estado de necessidade premente e absoluta ausência de autonomia.

Pois, não tinham acesso a escolas públicas, já que Lei Complementar à Constituição do Império de 1824, proibia os negros (e os leprosos) de frequentar escolas, por serem considerados “doentes e portadores de moléstias contagiosas.” Não podiam comprar terras, pois segundo o Artigo 1º da Lei nº 601 de 1850, conhecida como Lei de Terras, as terras devolutas somente poderiam ser adquiridas por meio de compra. E não podiam trabalhar como assalariados, já que o Decreto nº 528, de 28 de Junho de 1890, franqueava a entrada de imigrantes válidos e aptos ao trabalho, à exceção dos indígenas da Ásia ou da África (os escravos). Assim é que os escravizados de antes nunca foram libertos, pois apesar de alcançarem uma suposta liberdade física, nunca alcançaram autonomia econômica, política e social.

As estatísticas do Ministério do Trabalho apontam redução no número de operações para resgate de trabalhadores em condições análogas à de escravos. Isso pode acentuar o número de casos de exploração e degradação da força de trabalho no país?
Sim. A grande verdade é que a política neoliberal assim compreendida como aquela que pretende colocar um fim ao estado de bem-estar social, que é inclusive aquele que rege a nossa Constituição Cidadã de 1988, conforme o Artigo 170 da Constituição Federal, vem lançando insidiosos tentáculos sobre o Brasil há muitos anos, visando justamente privilegiar o lucro em detrimento da dignidade da pessoa humana.

Assim é que verbas devidas à manutenção de programas como esses foram reduzidas de forma que hoje temos o mais completo caos, pois há um ínfimo número de Auditores Fiscais e Procuradores do Trabalho, considerando a população ocupada, os quais lutam com um reduzido orçamento para manterem os órgãos em funcionamento.
A população empregadora, ciente dessa realidade, lança mão da exploração e degradância como forma de obter lucro fácil. Nesse sentido é importante ressaltar que a forma opressiva de labor, quer seja físico ou psíquico, é utilizada a miúde como meio de fazer render a produção. Pois, sabem que trabalhadores oprimidos pelo medo, ansiedade e precariedade, produzem mais e melhor.

Não importando nesse caso, se haverá adoecimento ou morte em decorrência do trabalho, visto que a grande massa desempregada garantirá que os trabalhadores descartados de hoje, poderão ser facilmente substituídos. A tendência, portanto, é aumentar o número de casos de exploração e degradação da força de trabalho no Brasil.

Diante de tanta miséria, é verdade a afirmação de que os direitos trabalhistas são impactantes para o chamado “custo Brasil”?
É lógico que não. Esse é o discurso neoliberal. Um discurso formatado pela pós-verdade, que nada mais é do que a própria mentira. Faz parte da política neoliberal a manipulação da população através da mídia.  Afirma-se algo e imediatamente as redes sociais se encarregam de multiplicar a informação inverídica. Em pouco tempo a população encontra-se totalmente convencida de que realmente são os direitos trabalhistas responsáveis pelo “custo Brasil”, pela crise econômica que grassa o país. É a maior mentira já contada em toda a história.

Christophe Dejours, psicanalista, psiquiatra e ergonomista francês, cientista social autor da disciplina Psicodinâmica do Trabalho, descobriu que a lógica utilizada pelo sistema neoliberal para manipular, mentir, isolar e matar trabalhadores, através do assédio moral e suicídio ocorrido em massa na França logo após uma grande crise econômica, era a mesma utilizada pelos nazistas.

Banaliza-se o mal, banaliza-se a injustiça social, institucionaliza-se a mentira, convence-se de que a mentira é verdade e em pouco tempo já não temos seres humanos pensantes, mas sim autômatos que se esvaem como escravos sociais.

É simples, segundo planilha de encargos sociais do guia trabalhista, sobre um salário/hora de R$ 8,50, uma empresa não optante pelo Simples Nacional terá um custo mínimo de encargos de R$ 8,654/hora, totalizando o custo total de mão de obra para esta hora de R$ 17,154. Ou seja, 101,81 % de encargos sociais. Pergunta-se: É o custo do trabalho que é alto ou é a carga tributária que é excessiva?

A perspectiva de combate ao trabalho escravo diminui com a crise econômica e política por que vive o Brasil?
Nossos Juízes, Procuradores e Auditores Fiscais do Trabalho são verdadeiros heróis nacionais. Trabalham com uma demanda altíssima, adoecem por conta dessa demanda, vêm dia a dia a redução de recursos para o combate em questão, mas não se quedam. Continuam altivos, como ávidos guerreiros.

Acredito que esse combate não diminuirá, ao contrário, arrefecerá. Eles darão a resposta ao que são chamados. Eles não serão confundidos, pois sabem com o que lidam. São conscientes, cumpridores de seus deveres e tenho certeza absoluta, defenderão o trabalhador brasileiro. A escravidão não florescerá no Brasil. A surpresa, creio eu, será para os maus empregadores. Aqueles que se aproveitam da crise estabelecida e tiram proveito dos mais fracos. Esses sim serão surpreendidos com a atuação magistral de nossas autoridades.

A prevalência do negociado sobre a lei pode provocar o aumento das situações de desrespeito à dignidade do trabalhador já que a própria duração da jornada de trabalho pode ser objeto de negociação?
Sim. Quando se fala em prevalência do negociado sobre o legislado e se cita como exemplo o que ocorre em outros países, esquece-se de dizer que nos outros países o negociado sobre o legislado implica em maiores e melhores direitos do que aqueles já garantidos legalmente. O mínimo é garantido por lei. O máximo é alcançado via negociação.

Mas o discurso brasileiro parece sinalizar em direção contrária, ou seja, pretende-se negligenciar o que foi estabelecido pela Constituição Federal, Carta Magna de nosso país, e privilegiar a precarização a partir do estado de subserviência do trabalhador e/ou sindicato.

Penso que as autoridades trabalhistas conscientes de tais fatos atuarão duramente para combater essa falácia. Declararão a nulidade de tais negócios jurídicos, posto que flagrantemente inconstitucionais, e para isso detêm Princípios Internacionais e Constitucionais que os ampararão em todas as decisões.

(Fonte: Programa Hora Certa – TRT de Goiás)